Ambiente

Mudanças climáticas ameaçam aves de área isolada da Amazônia. Fauna da Caatinga também pode ser afetada

Por Dimas Marques, Fauna News – 

No interior da floresta, em áreas inacessíveis aos homens, a vida selvagem segue seu ciclo natural. Grandes distâncias que garantem um certo isolamento e separam a natureza da civilização humana sempre foram consideradas aliadas na conservação da biodiversidade. Áreas protegidas como os parques nacionais, as reservas biológicas e as estações ecológicas, categorias do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), carregam um pouco dessa ideia.

Mas as mudanças climáticas promovidas pelo homem estão desconstruindo esse conceito. Pelo menos essa é a hipótese do pesquisador e professor da Escola de Recursos Naturais Renováveis da Universidade do Estado da Louisiana (LSU, na sigla em inglês), Philip Stouffer. Em artigo publicado em outubro na revista Ecology Letters, ele, os doutorandos da LSU Vitek Jirinec e Cameron Rutt e um grupo de pesquisadores relatam uma redução nas populações de algumas espécies de aves no interior de um fragmento bem conservado da Floresta Amazônica ao norte de Manaus (AM) nos últimos 35 anos. Eles acreditam que as alterações no clima devam ser as maiores responsáveis.

A pesquisa faz parte do Projeto Dinâmica Biológica de Fragmentos Florestais (PDBFF), iniciado em 1979 e que contou com atuação direta do conhecido biólogo e ambientalista Thomas Lovejoy. A intenção era avaliar a importância da manutenção de uma grande reserva florestal protegida ou de várias pequenas de igual tamanho. Os trabalhos começaram no então recém-criado Distrito Agropecuário da Superintendência da Zona Franca de Manaus (Suframa), área ao norte da capital do Amazonas que continha grande extensão de floresta ainda conservada. Na época, imaginava-se que se fragmentaria com o passar dos anos.

“No início dos anos 1980, Rob Bierregaard, então diretor de campo do projeto, estava fazendo amostragem em dezenas de locais na floresta contínua. Naquele ponto, esperava-se que grande parte da área seria desmatada e essas primeiras amostras representariam o ponto de partida para examinar a degradação do ecossistema após o isolamento dos locais”, relata Stouffer. Foi com essa base de dados e de levantamentos realizados na década de 1990 que os pesquisadores trabalharam para comparar com a situação atual.

Stouffer, que desde 1991 desenvolve pesquisas na Amazônia, relata que a ideia de verificar se havia ocorrido alguma mudança nas populações de aves de áreas com floresta ainda intacta do Distrito Agropecuário da Suframa surgiu em 2008. Ele conta que, no ano anterior, houve intenso trabalho de levantamento de espécies nos mesmos fragmentos florestais amostrados desde a década de 1980. “Com base nos padrões que vimos se desenvolvendo, não ficamos surpresos com o fato de o conjunto de aves insetívoras terrestres e que vivem próximas ao solo estar muito raro nessas amostras. São espécies que já sabíamos que não se saíam bem em fragmentos ou em floresta secundária”, explicou.

Mas a surpresa deu-se quando o mesmo trabalho foi realizado em pontos de floresta intocada. “Depois de trabalharmos por algumas semanas com sucesso mínimo em encontrar essas aves, começamos a nos perguntar se essas espécies eram realmente menos comuns do que quando trabalhei pela primeira vez nos mesmos locais no início dos anos 1990”, explicou Stouffer. Esse questionamento foi o motivador para a realização das comparações utilizando dados de mais de três décadas de pesquisas.

Pesquisadoras da equipe coletando dados de uma ave – Foto: Philip Stouffer

Metodologia

Após selecionarem as áreas de estudo, Stouffer e equipe esticaram extensas redes de neblina (redes feitas com linhas muito finas, quase imperceptíveis às aves, que acabam colidindo com elas e ficando presas). O objetivo era capturar as aves do chamado sub-bosque, que se deslocam nos dois metros mais baixos da floresta, excluindo-se as maiores, como mutuns, macucos e inhambus. “Dos dados da década de 1980, trabalhamos com os de 34 locais de toda a área do PDBFF, estendendo-se por 35 quilômetros de uma extremidade a outra. Para os dados modernos, trabalhamos em 21 locais na mesma área, estendendo-se por 40 quilômetros. Acabamos com 79 espécies que pudemos analisar”, explica o pesquisador.

A comparação de dados indicou que as aves com maior declínio populacional desde o início da década de 1980 são as insetívoras terrestres e que vivem próximas ao solo, como a choquinha-de-barriga-ruiva (Isleria guttata), a vira-folha-pardo (Sclerurus caudacutus), o uirapuru-verdadeiro (Cyphorhinus arada), o uirapuru-de-asa-branca (Microcerculus bambla), o formigueiro-de-asa-pintada (Myrmelastes leucostigma) e o pinto-do-mato-carijó (Myrmornis torquata). Entretanto, enquanto algumas espécies sofrem impacto negativo, outras dão indicativos de estarem se adaptando melhor à nova realidade.

O pesquisador Philip Stouffer com um uirapuru-verdadeiro, espécie que sofre com mudanças no clima – Foto: Philip Stouffer

“Devo ressaltar também que algumas aves aumentaram em abundância desde a década de 1980. Foram principalmente as que comem algumas frutas, mas também o papa-formiga-de-topete (Pithys albifrons), que usa alguns dos mesmos recursos alimentares dos insetívoros terrestres, porém tem a vantagem de seguir as formigas-de-correição”, destaca Stouffer. Essas formigas formam exércitos de milhares de indivíduos que se deslocam pelo solo da floresta predando tudo o que encontram pela frente. O papa-formiga-de-topete aproveita para capturar os insetos que tentam fugir das vorazes predadoras. Esse comportamento faz com que ela não tenha território fixo, e portanto tenha escapado do declínio decorrente da fragmentação da floresta.

Das 79 espécies de aves capturadas, o estudo indicou que 52 tiveram declínio de suas populações, enquanto 24 aumentaram. Três se mantiveram estáveis.

Identificadas as diferenças populacionais nas espécies de aves, o passo seguinte foi tentar explicar o motivo desse fenômeno. Os pesquisadores descartaram a possibilidade de a causa ser a alteração da paisagem, pois a área geral do Distrito Agropecuário da Suframa manteve quase que a mesma cobertura florestal do início dos anos 1980 (mais de 90% do seu território). Também não foram encontradas evidências de efeitos de borda (supressão de vegetação ou atividades humanas na região mais externa do perímetro onde se desenvolveu o estudo), até porque as coletas de amostras aconteceram longe das bordas. Outras possibilidades descartadas foram a invasão por espécies generalistas e a ocorrência de novos patógenos ou predadores. “Isso nos leva a pensar que a mudança climática está envolvida, mas não sabemos como”, afirma Stouffer.

O que mudou na floresta

Os pesquisadores destacam que as estiagens estão mais quentes e secas naquela parte da Amazônia do que na década de 1980. Essa alteração poderia estar causando estresse físico nas aves das espécies afetadas negativamente ou reduzindo os locais com o microclima favorito delas. Ainda é considerada a hipótese de a mudança no clima influenciar na abundância de recursos alimentares desses animais.

Stouffer também lembra que a estrutura da floresta tem se alterado em função das mudanças climáticas. Na área onde foi realizado o estudo com as aves, há evidências de aumento da mortalidade de árvores e de maior ocorrência de outras, favorecendo a composição da floresta com espécies de crescimento mais rápido. “Isso também pode estar relacionado”, destaca.

Para Stouffer, constatar que as mudanças no clima podem estar afetando a fauna em áreas consideradas intocadas sugere que devemos questionar a suposição de que vastas áreas de floresta retêm a biodiversidade se puderem ser protegidas — sobretudo de perturbações como o desmatamento provocado pela urbanização e pela expansão das fronteiras agropecuárias. O pesquisador, que afirmou ter se aposentado das pesquisas de campo na Amazônia, destaca que, infelizmente, esse tipo de dados de longo prazo, necessários para examinar o problema, são raros. Há também a dificuldade de encontrar lugares pouco perturbados pelo homem em que esse tipo de pesquisa seja desenvolvida, de modo que seja possível descartar, ou confirmar, efeitos da alteração da paisagem.

Apesar da constatação preocupante, Stouffer afirma ser importante ressaltar que todas as espécies em declínio populacional indicadas no estudo ocorrem em grandes extensões em toda a Amazônia. “Elas não correm perigo de extinção enquanto houver muitas florestas intactas. Mas nossos dados sugerem que suas populações estão diminuindo, o que torna cada vez mais importante proteger o máximo possível de área florestal”, salienta. Ainda mais pelo fato de que essas aves não toleram pequenos fragmentos de floresta e que a regeneração da áreas degradadas leva mais do que 30 anos para novamente fornecer um habitat adequado a elas.

Não é só na Amazônia

O fenômeno detectado por Stouffer e sua equipe não é exclusividade da Amazônia. Quem já não viu as terríveis imagens de ursos-polares famintos em virtude do degelo de seu habitat, que altera todo o processo migratório da espécie? No Brasil, já há estudos com projeções futuras sobre o problema, como os desenvolvidos pela bióloga Daiany Caroline Joner, que trabalhou em seu mestrado e doutorado na Universidade Federal de Goiás (UFG) com projeções dos impactos das mudanças climáticas na fauna de unidades de conservação (UCs) de proteção integral da Caatinga.

Parte das pesquisas de Daiany é composta por dados de animais silvestres que habitam 12 UCs em que não é permitido o desenvolvimento da exploração direta dos recursos naturais e que possuem áreas em que só podem ser realizadas pesquisas científicas. Ela trabalhou com a Estação Ecológica Raso da Catarina, a Estação Ecológica do Seridó, a Estação Ecológica de Aiuaba, a Estação Ecológica do Castanhão, o Parque Nacional da Serra da Capivara, o Parque Nacional da Chapada Diamantina, o Parque Nacional da Serra das Confusões, o Parque Nacional das Sete Cidades, o Parque Nacional de Ubajara, o Parque Nacional do Catimbau, o Monumento Nacional do Rio São Francisco e a Reserva Biológica da Serra Negra.

A partir de modelos globais para 2080 apresentados pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), Daiany projetou que haverá intensificação da aridez no Nordeste do Brasil, principalmente na Caatinga, com aumento na temperatura média anual, chuvas mais irregulares ao longo do ano e uma maior ocorrência de eventos extremos, como secas mais severas e alagamentos. “A vegetação desse ecossistema será afetada. Além disso, é apontado que essas áreas se tornarão mais suscetíveis à desertificação, ainda que sejam consideradas apenas as variáveis climáticas”, explicou a bióloga.

No caso de haver dificuldades para o deslocamento dos animas e ocorrendo as mudanças climáticas modeladas para 2080, Daiany inferiu que muitas aves e mamíferos do Parque Nacional da Chapada Diamantina (BA) e do Parque Nacional do Catimbau (PE) não sobreviverão. “Quando pensamos em unidade de conservação, acreditamos que as espécies estarão mais protegidas dentro desse limite geográfico. Entretanto, quando pensamos no longo prazo, uma outra abordagem de conservação precisa ser levada em consideração”, disse a bióloga em raciocínio similar ao de Stouffer.

Perante esse contexto, Daiany verificou com modelos matemáticos os impactos para aves e mamíferos da Caatinga considerando dois cenários: com a possibilidade de os animais migrarem e com a possibilidade de eles não conseguirem se dispersar. “Parece até surreal pensarmos que as espécies não podem se dispersar, até mesmo as aves. Porém, os ambientes favoráveis à sobrevivência estão cada vez mais fragmentados e menores”, explica. Outro problema é o caminho entre os ambientes, que podem ter inúmeras barreiras, como estradas, inviabilizando o sucesso desse deslocamento.

Com a mudança no clima, muitos animais perderão áreas favoráveis para viverem. No caso dos que habitam mais de um bioma, como os vizinhos Caatinga e Cerrado, havendo possibilidade de dispersão, o impacto pode ser menor. Porém, se forem consideradas as espécies que só possuem ocorrência na Caatinga, os resultados são mais graves.

“Foi o caso do jacu-do-nordeste (Penelope jacucaca), uma ave com status de conservação já considerado “vulnerável” na classificação da União Internacional para a Conservação da Natureza, e o macaco guigó (Callicebus barbarabrownae), classificado “em perigo crítico” de extinção pela mesma instituição. As duas espécies podem perder todas as áreas climáticas favoráveis até 2080”, explica Daiany. Nessa mesma situação encontra-se a conhecida e ameaçada arara-azul-de-lear (Anodorhynchus leari), ave ainda muito cobiçada por traficantes de fauna.

Araras-azuis-de-lear voando no Raso da Catarina (BA) – Foto: Fábio de Paina Nunes/Wikimedia Commons
Daiany afirma que a nossa realidade vai depender tanto da habilidade das espécies em migrar como também da qualidade dos ambientes de entorno, com a presença de corredores ecológicos que permitam o deslocamento da fauna. Como certeza, ela, Stouffer e outros pesquisadores já trabalham com a premissa de que os efeitos das mudanças climáticas colocaram em xeque a ideia de que o isolamento dos animais silvestres em ambientes distantes da ação direta dos humanos seja uma garantia de sobrevivência deles. É mais um elemento a ser pensado na elaboração de políticas públicas e projetos de conservação da biodiversidade.

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