por Evanildo da Silveira, BBC News Brasil –
Por muito pouco — questão de segundos — a bióloga Carine Emer, do câmpus de Rio Claro, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), não morreu queimada no carro em que viajava no domingo, dia 27 de outubro, pela BR-262, entre Corumbá e Miranda, no Mato Grosso do Sul. Uma labareda gigante atravessou a rodovia, vinda de um incêndio no mato em suas margens. Foi apenas mais uma entre o maior número de queimadas já registrado no Estado. Entre os dias 1º de agosto e 31 de outubro, o número de focos de queimadas no Pantanal cresceu 506% na comparação com o mesmo período do ano passado.
Os dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostram que, em números absolutos, os incêndios em todo o bioma Pantanal saltaram de 1.147 entre agosto e outubro de 2018 para 6.958 nos três meses deste ano.
Outubro foi o mês que teve o maior aumento de focos, indo de 119 no ano passado para 2.430, o que representa um crescimento de 1.942%. Depois vem agosto, que passou de 243 para 1.641 (575%), e setembro, que foi de 785 para 2.887 (368%).
O fogo coloca em risco a vida de muitos animais da rica biodiversidade pantaneira, assim como a vegetação. É fácil encontrar animais mortos depois que o fogo se apaga, como cobras, lagartos e jacarés, estes principalmente por causa da seca.
“Ainda não há estimativa de quantas árvores e bichos foram queimados”, diz Carine. “Também é difícil dizer em quanto tempo a área vai se recuperar. Depende de até quando os incêndios vão durar, do que for destruído.” O governo do Estado ainda não tem um levantamento da situação.
O engenheiro florestal e especialista em restauração ambiental, Júlio Sampaio, gerente dos programas Cerrado e Pantanal, do WWF-Brasil, diz que, embora ainda não tenha sido feito um levantamento preciso do impacto dos incêndios na vida selvagem, ele foi intenso.
“Há vários relatos de animais incinerados ou asfixiados pela fumaça”, explica. “Os que se locomovem mais lentamente, como os de pequeno porte e os répteis são os que sofrem mais com as queimadas”, acrescenta.
De acordo com Sampaio, diferentemente de algumas plantas, que têm adaptações genéticas para sobreviver ao fogo, entre os animais elas não existem.
“Não há espécie da fauna brasileira que esteja adaptada para conviver com incêndios”, diz ele. “Isso faz com que o impacto (dos incêndios) seja muito maior para os animais do que para os vegetais. Mas não há estudos sobre isso, então é muito difícil estimar quantos bichos foram mortos.”
Ele alerta, no entanto, que o fogo aumenta ainda mais o risco de algumas espécies ameaçadas de extinção desaparecerem, como o tamanduá-bandeira (Myrmecophaga tridactyla), o tamanduá-mirim (Tamandua tetradactyla) e lobo-guará (Chrysocyon brachyurus) e algumas aves, como a arara-azul (Anodorhynchus hyacinthinus).
O único levantamento já feito depois dos incêndios foi elaborado pelo Instituto Arara Azul, uma organização não governamental que criou e administra o Refúgio Ecológico Caiman (REC), o maior centro de reprodução da espécie no Pantanal, com 54 mil hectares, onde há atualmente 98 ninhos cadastrados, dos quais 52% naturais e 48% artificiais. “O fogo atingiu nossa fazenda no dia 10 de setembro”, conta a bióloga Neiva Guedes, presidente do Instituto e professora do programa de pós-graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento Regional da Universidadade Anhanguera Uniderp (Universidade para o Desenvolvimento do Estado e da Região do Pantanal), de Campo Grande.
Atos criminosos e riscos para viajantes
De acordo com o governo do Mato Grosso do Sul os incêndios florestais ocorrem em várias direções e em proporções nunca registradas, causados “pela estiagem e atos criminosos”.
O fogo nas margens da rodovia BR-262, que liga Vitória (ES) a Corumbá (MS), cruzando o Pantanal, assusta e coloca em riscos a vida dos viajantes. As labaredas chegam a mais de dez metros de altura e formam uma cortina de fumaça, que transforma o dia em noite, reduzindo a visibilidade de quem trafega pela estrada.
Devido à gravidade da situação, em setembro o governo estadual decretou estado de emergência. Segundo o secretário de Meio Ambiente, Desenvolvimento Econômico, Produção e Agricultura Familiar, Jaime Verruck, a maioria das queimadas não ocorre por causas naturais, mas intencionais, feitas por fazendeiros ou populações indígenas para renovar os pastos ou abrir novas áreas de cultivo.
Verruck diz que é uma atitude cultural. “Historicamente sempre foi assim, nesta época do no ano coloca-se fogo”, explica. “Mas este é o período mais seco do ano, por isso proibimos qualquer tipo de queimada entre agosto e outubro de todos os anos. Agora, como a situação está mais grave, prorrogamos a interdição até 30 de novembro, assim como o estado de emergência. Neste período, todas as queimadas são ilegais.”
Segundo Verruck, elas já devastaram 56 mil hectares de vegetação nativa no Pantanal sul-mato-grossense apenas do dia 20 de outubro até o dia 31. “Em todo o Estado, a área chega 1,3 milhão de hectares, das quais cerca de 500 mil foram na reserva dos índios cadiuéus”, diz.
“A situação, já complicada nesta época do ano, se agravou, porque choveu apenas 30% do que é normal para este período.” Também contribuiu para intensificar o fogo uma combinação de outros fatores como baixa umidade do ar, alta temperatura, ondas de calor, muita matéria orgânica seca e grande velocidade do vento.
De acordo com ele, para combater as queimadas, o governo estadual conta com o apoio do Estado vizinho do Mato Grosso, do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e do Comando Militar do Oeste do Exército Brasileiro.
“Estão trabalhando dezenas de brigadistas do Ibama, bombeiros e militares”, conta. “Além disso, estão sendo usados no combate ao fogo três aviões e quatro helicópteros. Entre os problemas que enfrentamos nesse trabalho estão dificuldades nas comunicações entre os municípios atingidos, pois os incêndios queimaram as fibras ópticas.”
Em seu 1º Relatório do Impacto do Fogo sobre as Araras Azuis, Neiva informa que dos 98 ninhos cadastrados, 39 eram de araras 15 de outras oito espécies de aves, todos com ovos ou filhos. Além disso, havia 30 ninhos sendo preparados pelas araras ou em disputa com outras aves e 14 vazios. Desse total, 33% foram atingidos em diferentes graus de severidade, dos quais apenas dois foram perdidos totalmente. A contabilidade final revela, no entanto, que 16 filhotes e 23 ovos foram destruídos pelos incêndios.
Próximas gerações de araras ameaçadas
Segundo Neiva, isso afetará o sucesso das araras-azuis não só nesta estação reprodutiva, mas também no futuro.
“As perdas atuais serão sentidas nestas e nas futuras gerações, quando estes filhotes perdidos não entrarão na população reprodutiva daqui a 9 ou 10 anos”, lamenta em seu relatório.
“Queremos saber também o que acontecerá nos próximos anos com relação à alimentação, que até agora não era um fator limitante. Mas com os incêndios, hectares e mais hectares da palmeira acuri foram totalmente destruídos. Esta planta é chave não só para as araras-azuis, embora seja fundamental para elas, mas para várias outras espécies que se alimentam da sua polpa, inclusive o gado.”
Sobre o convívio da biodiversidade vegetal com o fogo anual do Pantanal há mais estudos. “De acordo com as pesquisas que temos realizado, os incêndios nas áreas mais sujeitas a inundações podem diminuir o número de espécies de árvores e arbustos que ocupam as partes baixas”, diz o botânico Geraldo Alves Damasceno Junior, dos programas de pós-graduação em Ecologia e Conservação e em Biologia Vegetal, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).
“Muitas árvores que tiveram suas copas queimadas não conseguirão rebrotar e a inundação que virá depois poderá impedir que sementes dessas espécies germinem, pois muitas delas precisam de um período prolongado de seca para nascer e crescer nesses ambientes”, acrescenta Damasceno.
Mas para a vegetação pantaneira as queimadas também podem ter um lado bom. “Elas promovem aumento da biodiversidade das espécies herbáceas que ocorrem nesse ambiente”, explica Damasceno.
“Como grande parte das plantas do Pantanal pertence a este grupo, no cômputo geral os incêndios podem promover um aumento na biodiversidade dos vegetais. Assim, o fogo é um elemento que na paisagem da região faz parte da dinâmica da vegetação, embora algumas espécies mais sensíveis possam desaparecer dos locais onde ele foi muito severo.”
A flora tem outra vantagem em relação à fauna do Pantanal. “A vegetação se recupera muito rapidamente”, explica Damasceno. “Em poucos meses, ela vai rebrotar novamente. Entretanto, alguns efeitos podem ser bastante duradouros. Para árvores e arbustos, por exemplo, nós conseguimos captar efeitos danosos até seis anos após eventos de fogo.”
Carine conta que pesquisa para seu pós-doutorado a dispersão de sementes na Mata Atlântica, mas estava no Mato Grosso do Sul para dar uma palestra na Semana da Pós-Graduação em Ecologia e Conservação na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), em Campo Grade.
“Eu achei que era uma ótima oportunidade para dar um pulo até o Pantanal e conhecê-lo, afinal é o sonho de todo biólogo ver este sistema tão rico”, conta. “Então organizamos uma pequena excursão para ir até a região do Passo do Lontra, que fica no município de Corumbá.”
Eles chegaram ao local na sexta-feira e Carine disse que já achou a situação esquisita. “Estava tudo muito estranho, muito seco, e o rio Miranda tão baixo como nunca se viu”, explica.
“Saímos para ver bicho, mas não ouvíamos nem víamos nenhum. No sábado de madrugada, aconteceu a mesma coisa. Poucas aves, o que é estranho, porque no Pantanal você visualiza muitos animais. Saímos de barco pelo rio e só o que víamos era fogo dos dois lados. Algo surreal, pois a gente vai para o Pantanal, a maior região alagável do mundo, e só vê incêndio por todos os lados e nada de bicho.”
Mas o pior ainda estava por vir. No domingo eles andaram horas de carro pela BR-262 e praticamente não avistaram animais. “Só vimos um tamanduá-mirim na beira da rodovia e tudo seco, lagoas, riachos, vegetação”, revela. “Vimos também jacarés mortos em poças secas.”
No final do dia resolveram voltar para Campo Grande. “Era por volta de umas 18 horas e começamos a ver muito fogo, nos dois lados da estrada e focos mais distantes”, conta.
“De repente, uma labareda gigantesca cortou a estrada e não nos pegou por questão de dois ou três segundos. Fizemos a volta e retornamos para Corumbá, muito assustadas e com uma sensação de estar no Inferno, de Dante. Quer dizer, não conheci o Pantanal, pois não vi bichos, e quase morri.”
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