Por Didier Gastmans e Vinícius dos Santos para Unespciência –
Equipe de Rio Claro utiliza isótopos estáveis na precipitação para entender melhor o regime de chuvas na região
Num estudo que já dura quase seis anos e conta com o financiamento da Fapesp e da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), pesquisadores do Centro de Estudos Ambientais (CEA), do Câmpus da Unesp em Rio Claro, apontam variações importantes no regime de chuvas na Região Sudeste ao longo do ano a partir da análise de isótopos estáveis na água da chuva. A aplicação de técnicas isotópicas permitiu a definição dos caminhos percorridos pela água até se transformar em chuva, identificando diferentes origens e trajetórias, a depender da estação do ano. Os resultados reforçam a relevância do papel da Floresta Amazônica na recirculação das águas, que se reflete especialmente na composição isotópica da precipitação no Sudeste durante a estação chuvosa.
A continuidade das pesquisas poderá no futuro contribuir com os especialistas para o entendimento das alterações promovidas pelas mudanças climáticas sobre o clima nas regiões tropicais, bem como na previsão da frequência, magnitude e intensidade de futuros eventos meteorológicos significativos, como tornados, furacões, os fenômenos El Niño e La Niña, atuando em conjunto com as autoridades no sentido da implementação de ações de prevenção e mitigação a esses eventos.
Isótopos estáveis e o que eles nos contam a respeito de fenômenos climáticos
Toda molécula de água é constituída por dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio, entretanto, nem todas as moléculas são idênticas, pois esses elementos apresentam isótopos com massas distintas, alguns são mais leves e outros mais pesados. Processos de mudança de fase da água (passagem de água para vapor e vice-versa) ao longo do ciclo hidrológico fazem com que sejam produzidas assinaturas isotópicas únicas, como uma “impressão digital” que possibilita aos geocientistas conhecer a história da água.
Como não é possível se medir o conteúdo isotópico absoluto em uma amostra, as diferentes concentrações são expressas em relação a padrões, o que possibilita a comparação entre diferentes amostras. Comparativamente, águas com um maior conteúdo relativo em isótopos pesados são denominadas de enriquecidas, enquanto aquelas com maiores conteúdos relativos de isótopos leves são denominadas empobrecidas. Essas diferenças nas razões entre isótopos mais leves e mais pesados na chuva podem contar aos cientistas algo a respeito da sua origem e dos fenômenos climáticos associados à sua formação.
Quando a água evapora nos oceanos, moléculas de água com átomos mais leves possuem uma tendência a serem evaporadas, enquanto a água composta por átomos mais pesados tende a se precipitar com a chuva. Com a movimentação das massas de ar, trazendo as chuvas para o interior das áreas continentais, aumenta a proporção de moléculas de água mais leves na chuva.
A utilização dos isótopos estáveis na compreensão da relação entre fenômenos climáticos e a chuva iniciou-se na década de 1960, com a criação de uma rede de monitoramento global, operada conjuntamente pela Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) e pela Organização Meteorológica Mundial (OMM), denominada Global Network of Isotopes in Precipitation (GNIP), que conta atualmente com mais de 350 pontos de monitoramento da composição isotópica da chuva ao redor do globo, e cujos dados, disponibilizados em plataforma aberta pela AIEA, vêm sendo utilizados com os mais diversos propósitos, desde a utilização desses valores da composição isotópica como referência para estudos hidrológicos até a validação de modelos globais de circulação atmosférica.
O monitoramento isotópico da precipitação em território brasileiro iniciou-se na década de 1960 e foi interrompido nos anos 1980. Em 2010, com a instalação de uma estação na cidade de Belo Horizonte, e posteriormente em 2013 nas dependências do Centro de Estudos Ambientais da Unesp em Rio Claro, sob a coordenação do pesquisador Didier Gastmans, a participação brasileira na rede GNIP foi retomada. Em 2018, foi assinado um termo de cooperação técnica entre o Serviço Geológico do Brasil (CPRM) e a Agência Internacional de Energia Atômica para a implantação de uma série de estações de monitoramento isotópico da chuva em território brasileiro.
O que nos contam os isótopos a respeito da chuva no Sudeste brasileiro
Mas o que sabemos atualmente sobre a composição isotópica da chuva e suas relações com o clima na Região Sudeste do Brasil? Durante mais de cinco anos de observação da composição isotópica das chuvas em Rio Claro, verificamos que existe uma variação sazonal muito importante. Chuvas com maior conteúdo de isótopos pesados ocorrem geralmente nos meses mais secos (de abril a outubro), enquanto a estação chuvosa, que vai de novembro a março, é marcada pela ocorrência de chuvas com maior conteúdo em isótopos leves.
Essa distribuição sazonal está claramente relacionada com a origem e as figuras climáticas responsáveis pelas chuvas nas diferentes estações do ano (veja quadro explicativo). As chuvas de verão, que são mais empobrecidas (ou seja, com maior conteúdo de isótopos mais leves), apresentam relação direta com duas figuras meteorológicas muito importantes: a Zona de Convergência Intertropical (ZCIT) e a Zona de Convergência do Atlântico Sul (ZCAS). A ZCIT transporta a umidade do Oceano Atlântico para a região amazônica. Essa umidade, ao se chocar com a Cordilheira dos Andes, que atua como uma barreira, acaba sendo direcionada para a Região Sudeste formando a ZCAS. Nessa passagem sobre a Amazônia, uma boa parte da chuva que cai sobre a floresta se evapora novamente e é reincorporada às nuvens, fazendo com que aumente a quantidade de isótopos leves. Esse processo, fundamental para que a chuva alcance o Sudeste, reforça a importância da Floresta Amazônica e a sua manutenção, uma vez que vegetação atua como uma grande bomba de recirculação de água para a atmosfera, gerando a precipitação ao longo da ZCAS.
Já as chuvas de inverno, que proporcionalmente possuem mais isótopos pesados (chuvas enriquecidas), estão associadas à ação de Frentes Frias (FF) vindas do Sul, que se chocam com massas de ar mais quente localizadas na Região Sudeste, que têm o vapor transportado do Oceano Atlântico percorrendo áreas continentais das Regiões Nordeste e Sudeste do Brasil. Como não existe uma grande disponibilidade de umidade na atmosfera, de maneira contrária ao observado nas chuvas de verão, em que o vapor amazônico fornece umidade para a atmosfera, não ocorre o aumento da quantidade de isótopos mais leves nas nuvens. Além disso, a baixa umidade do ar pode ocasionar a evaporação da água no momento em que a chuva cai, retirando isótopos leves e aumentando a quantidade de isótopos mais pesados na chuva, ou seja, serão chuvas mais enriquecidas.
A movimentação da água ao longo do ciclo hidrológico tem no transporte de vapor na atmosfera, e na consequente formação de chuvas, um de seus processos mais complexos, governado por fenômenos climáticos de difícil compreensão e interpretação, que vêm sendo alterados em função das mudanças climáticas. Devemos nos lembrar que a chuva representa a conexão direta com a água evaporada dos oceanos e transportada para o continente, e constitui a principal fonte para a recarga dos aquíferos e manutenção das descargas nos rios. Portanto, a avaliação das variações temporais e espaciais na composição isotópica da chuva atual pode auxiliar os cientistas a compreender a circulação da água em bacias hidrográficas e nos processos de recarga dos aquíferos, uma vez que a água possui memória, que pode ser desvendada por meio de técnicas isotópicas.
A partir do conhecimento já adquirido, e que seguramente será ampliado com a expansão da rede de observação, será possível utilizar essas informações isotópicas e suas relações com o clima para a melhoria de nossa compreensão sobre processos climáticos pretéritos, registrados nas águas subterrâneas, em geleiras, nos espeleotemas, como estalactites e estalagmites de cavernas, etc. Aprendendo com o passado poderemos planejar melhor a utilização da água e sua disponibilidade face ao cenário de mudanças climáticas presente. Além disso, a partir da utilização de técnicas isotópicas em estudos de sistemas hidrológicos pouco conhecidos, é possível se chegar a soluções para os desafios na gestão de recursos hídricos face às mudanças climáticas, que afetam as zonas tropicais.
Figuras climáticas atuantes na Região Sudeste
O regime de chuvas na Região Sudeste do território brasileiro está diretamente relacionado à sua localização no Trópico de Capricórnio, numa faixa transicional entre o clima tropical e o subtropical, onde ocorre a atuação de diversos sistemas atmosféricos de características distintas. A faixa de domínio do clima tropical é caracterizada pela grande disponibilidade de umidade e temperatura, na qual a Zona de Convergência Intertropical (ZCIT) e a Zona de Convergência do Atlântico Sul (ZCAS) são as principais figuras climáticas. Na faixa de domínio subtropical, a dinâmica de massas frias provenientes da região Antártica, bem como a disposição do relevo e consequente continentalidade, favorece o predomínio da atuação da Massa Polar Atlântica (mPa) e consequentemente das Frentes Frias (FF).
O principal sistema atmosférico responsável pela precipitação durante o verão no Sudeste, entre dezembro e fevereiro, é a ZCAS, uma extensa faixa de intensa nebulosidade, umidade e chuva de orientação noroeste-sudeste que se estende desde o sul da Amazônia em direção ao litoral sudeste. Esta extensa banda, carregada de umidade, proveniente da Amazônia, junto a elevadas temperaturas do continente, encontra as incursões de Frentes Frias (FF) provenientes do sul do país, formando as famosas chuvas frontais, que elevam os índices pluviométricos nessa época do ano.
A quantidade de vapor transportado da região amazônica para a Região Sudeste depende da posição da ZCIT, que é uma faixa de intensa nebulosidade, precipitação e trovoadas formada a partir da convergência dos ventos alísios, oriundos das regiões de altas pressões subtropicais dos
dois hemisférios, para as zonas de baixas pressões situadas na região do Equador. Ao longo das estações do ano a ZCIT desloca-se com base no movimento aparente do Sol, alcançando a divisa entre os estados de Goiás e Tocantins, situada na latitude 15°S, durante o verão, provocando chuvas no Nordeste e Norte do país, e fortalecendo a Massa Equatorial Continental (mEc), uma massa continental úmida e quente localizada sobre a região amazônica, próxima ao Equador, que se desloca e transporta umidade amazônica para a região Sudeste.
Durante o inverno, a ZCIT está localizada no Hemisfério Norte, enfraquecendo a atuação da mEc, que se limita apenas à região amazônica. Nessa época do ano ocorre diminuição das temperaturas no continente, e consequente diminuição nas chuvas, que são geradas pelas incursões das massas polares e frentes frias.
Foto de destaque: Chuva em área de recarga do Sistema Aquífero Guarani na região de Brotas (SP). (© Arquivo dos autores)
Didier Gastmans é pesquisador IV do CEA/Unesp – Rio Claro.
Vinícius dos Santos é aluno de doutorado do Programa de Pós Graduação em Geociências e Meio Ambiente – IGCE/Unesp Rio Claro.
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