por Instituto Socioambiental –
PL 1.205/2019 pode ser votado na Comissão de Meio Ambiente da Câmara dos Deputados a qualquer momento
As áreas protegidas, no Brasil, como Unidades de Conservação (UC) e Terras Indígenas (TI), vêm enfrentando crescentes ameaças. A mais recente visa restringir dois instrumentos importantes, que conferem efetividade e atualidade às funções ecológicas dessas áreas: as zonas de amortecimento e os corredores ecológicos. A razão disso se esconde em seu próprio nome: áreas protegidas. O que protegem e de quem protegem essas áreas?
Originalmente, esses espaços protegidos deveriam preservar a integridade da área em questão, seja ela entendida como um conjunto de paisagens, sua biodiversidade, seus processos biológicos, seus moradores – humanos e não humanos – os modos de viver, as manifestações culturais de seus habitantes, entre outros aspectos. Ou seja, proteger pluralidades, permitir que ali exista diversidade. Levando isso em conta, não é difícil imaginar porque tais áreas estão em xeque: o que elas almejam proteger possui cada vez menos valor para as autoridades públicas, apesar da crescente preocupação da sociedade brasileira.
Por outro lado, quando nos perguntamos de quem essas áreas deveriam ser protegidas, nos defrontamos com a sanha predatória da nossa espécie, traduzida em atividades como o garimpo, a exploração madeireira, o desmatamento, a transmissão de doenças, as ameaças físicas e psicológicas aos moradores desses espaços protegidos, entre outros. Trata-se de um conjunto de atividades que tem encontrado um significativo acolhimento tanto nas transformações políticas pelas quais o país passa, quanto nas narrativas relacionadas com seu futuro.
Proteger áreas quando atividades predatórias são aplaudidas e estimuladas por autoridades públicas é um desafio hercúleo. É nesse contexto que emergem um conjunto de projetos de lei, no Congresso, visando desproteger esses espaços. No caso das TIs, há projetos para impossibilitar as demarcações, permitir atividades predatórias em seu interior e mesmo projetos que colocam em xeque o direito originário que os povos indígenas têm sobre seus territórios, consagrado pela Constituição. As UCs, por sua vez, vêm sendo comidas pelas bordas, tanto metaforicamente, como literalmente. E são ameaçadas, tanto no que concerne às suas fronteiras físicas, quanto à sua situação legal. Essas áreas têm sido sistematicamente invadidas, desmatadas, desrespeitadas.
Entre as ameaças que vêm do Congresso Nacional, há uma que cumpre à risca a ideia de “comer pelas bordas”. Trata-se do Projeto de Lei (PL) nº 1.205/2019, de autoria do deputado Pinheirinho (PP-MG), que versa sobre as zonas de amortecimento, as áreas que circundam as UCs, onde deve haver um regime mais cuidadoso de uso da terra para evitar impactos que afetem a integridade do espaço protegido. O projeto modifica a Lei nº 9.985/2000, do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), transformando seus dispositivos acerca das zonas de amortecimento num conjunto de medidas que impossibilitam o cumprimento de seus objetivos.
A ideia geral do PL nº 1.205/2019 é obrigar que as zonas de amortecimento e os corredores ecológicos – áreas que ligam dois ou mais espaços protegidos – sejam designados, após estudos técnicos e consulta pública, no ato de criação da UC. Ao fazê-lo, portanto, na prática, o PL vai impedir que novas áreas sejam submetidas a esse regime de uso mais cuidadoso posteriormente ao estabelecimento da UC.
A questão é que esses trechos de terra, zonas de amortecimento e corredores ecológicos, existem para preservar a integridade ecológica das UCs. Depois da criação da unidade, revisitar os limites das áreas que a circundam e seus regimes de uso é essencial para garantir a conservação da biodiversidade e dos processos biológicos dentro da UC. A gestão da unidade, os estudos e pesquisas feitos ali, o manejo de sua biodiversidade e a avaliação dos impactos produzidos pelo meio externo são continuamente reavaliados e os ajustes necessários podem incluir a necessidade de estabelecer um regime mais cuidadoso de uso da zona de amortecimento, sob pena de que a UC não cumpra seu objetivo de conservação da natureza.
O cenário que se desenha é grave. Infelizmente, o PL vai muito além, criando um requisito para a delimitação da zona de amortecimento: ela não poderá abranger “área urbana consolidada”. E para não haver dúvidas de que se trata de uma restrição bastante ampla, o PL define “área urbana consolidada” como aquela que possua pelo menos dois desses requisitos: 1) inserção em perímetro urbano ou em zona de expansão urbana conforme delimitação pelo Plano Diretor por lei municipal específica; 2) sistema viário implantado; 3) oferta de serviços de ensino fundamental na área ou em suas proximidades; 4) existência de, no mínimo, três dos seguintes equipamentos de infraestrutura urbana: drenagem e manejo das águas pluviais; esgotamento sanitário; abastecimento de água potável; limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos; ou distribuição de energia elétrica.
O resultado disso é que uma área no meio da Amazônia, onde há uma escola numa pequena vila e por sorte de seus moradores haja energia elétrica e saneamento básico, o que deveria ser direito de todos os brasileiros em zonas rurais e urbanas, se converte, pelo artifício desse PL, em “área urbana consolidada”. Se ali ao lado houver uma UC, a zona de amortecimento não poderá abarcar essa pequena vila, mesmo que o que ali aconteça seja fundamental para a manutenção da integridade da UC.
Para além de ameaçar as UCs, pois suas zonas de amortecimento e corredores ecológicos não poderão ser designados de forma a assegurar a conservação dessas áreas, o PL tem outro efeito, talvez ainda mais deletério: estipula o prazo de um ano para que as UCs já estabelecidas se adequem a essas novas restrições. Não é difícil prever o que acontecerá com as zonas de amortecimento, já atualmente alvo de enorme especulação imobiliária em algumas regiões e de invasões e grilagem, em outras. O resultado final para as UCs será desastroso.
Diante disso, entendemos que o PL nº 1.205/2019 representa grave ameaça ao Sistema Nacional de Unidades de Conservação, com significativo impacto ao direito da sociedade a viver num meio ambiente ecologicamente equilibrado, garantido no art. 225 da Constituição Federal, devendo ser rejeitado pela Câmara dos Deputados. (ISA)
(#Envolverde)