Por Sucena Shkrada Resk* –
Legislação do SNUC pode ser colocada em xeque, se UCs marinhas forem expostas à maior vulnerabilidade
Após duas décadas da criação do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC – LEI 9.985/2000), o Brasil se depara hoje com a possibilidade de flexibilizações mais permissivas anunciadas, neste mês, por meio do presidente do Instituto Brasileiro do Turismo (Embratur), Gilson Machado Neto, em rede social, que podem comprometer ecossistemas das áreas marinhas, segundo especialistas em ciência, gestão e direito socioambiental. A Secretaria de Ecoturismo do Ministério do Meio Ambiente já apresentou o Plano Nacional de Recifes Artificiais, no qual há a previsão de 128 a serem distribuídos por sete estados e no Distrito Federal, contando com 16 na região de Fernando de Noronha, PE, como também visitas de cruzeiros marítimos.
Esta pauta tem suscitado a cobrança de maior transparência no processo e diálogo mais aprofundado entre o governo federal e os estaduais e a sociedade, a Marinha do Brasil, a Academia, com pescadores artesanais, gestores, especialistas em Direito e empresários, entre outros segmentos. Afinal, o que está em jogo com todas estas propostas, de curto a longo prazos, quais são seus possíveis impactos socioambientais, quais são os critérios para a seleção destas áreas e com qual finalidade? Muitas questões estão em aberto.
Atualmente na área marinha brasileira, há 73 UCs de de proteção integral, que correspondem a 3,3% da área total e 104, de uso sustentável (23,1%). Ao fazer uma analogia sobre estes novos planos de incentivo ao turismo, o risco apresentado é como se o conceito transversal de obsolescência programada utilizado para produtos no mercado (com vida útil de curto prazo) fosse introduzido, neste caso, onde existe uma organicidade viva e em movimento. Qual é o verdadeiro custo-benefício de hipoteticamente gerar mais receita com o aumento do turismo por meio intervenções artificiais e aumento de visitação x o estresse sobre a conservação dos patrimônios e do equilíbrio socioambiental?
Vale destacar que a possível direção ao “esgotamento” de áreas de conservação pode ter um preço muito alto. Neste caso, não se trata de depois repor um produto novo, numa relação de consumo desenfreada. Os comprometimentos possíveis incluem espécies de fauna e flora e populações locais e outras consequências decorrentes, quanto aos oceanos e às mudanças climáticas.
A polêmica mais recente gira em torno de novas regras e atrações programadas para a região onde estão a Área de Proteção Ambiental Fernando de Noronha – Rocas – São Pedro e São Paulo; do Parque Nacional Marinho de Fernando de Noronha, PE, que além de serem UCs federal. O arquipélago foi reconhecido como Patrimônio Natural da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e tem administração estadual.
De acordo com Neto, o aval na área da UC federal deverá partir do Ministério do Meio Ambiente/Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama)/Instituto Chico Mendes (ICMBio), como rege a legislação. Mas a pasta e os órgãos, ao serem questionados pela imprensa, não deram ainda um posicionamento mais concreto sobre este assunto.
Entre os pareceres contrários ao anúncio, está o do secretário de Meio Ambiente e Sustentabilidade de Pernambuco, José Bertotti. Ele reforça que existe um conselho gestor, que deve ser consultado, formado não só pelo governo federal, como estadual, por órgãos de proteção ambiental e empresários do arquipélago. Já existe também uma mobilização em curso liderada pelo Projeto de Conservação Recifal da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
No centro da polêmica, os argumentos contrários se sustentam principalmente em regras legais já estabelecidas com o licenciamento ambiental e o plano de manejo, que foram precedidos de estudos minuciosos, e que são mais restritivos. Noronha é um “santuário” de espécies em risco de extinção.
Os principais pontos que acarretam o alerta de especialistas tratam dos possíveis impactos socioambientais tanto em terra, como marítimos, previstos com a proposta da reabertura de Noronha para a visitação de cruzeiros, que estava proibida desde o ano de 2013. Com uma capacidade de carga, por ano, na casa de 100 mil visitantes, este novo cenário poderia exceder em muito este número, que já sofre pressão. Mais um ponto de vulnerabilidade é que, sem água própria potável, o arquipélago depende do governo do estado de PE para a dessalinização, além da questão delicada de infraestrutura para coleta e destinação dos resíduos ao continente. O risco de contaminação também por água de lastro, dejetos e outras substâncias provenientes das embarcações é potencializado.
Outra questão problemática é o anúncio feito pela Embratur, da abertura de 16 pontos de pesca e de mergulho em Noronha, com a implementação de recifes artificiais. Este é mais um tipo de intervenção que poderia facilitar o aparecimento de espécies invasoras, como do coral-sol. Este bioinvasor que ataca os corais nativos já foi detectado em naufrágios na região, como destaca o oceanógrafo e professor da UFPE, Múcio Banja, que atua em projeto de combate a esta espécie. Outros casos já foram relatados na Estação Ecológica (Esec) de Tamoios (RJ) .
O Brasil tem sofrido com espécies exóticas invasoras em águas continentais há anos. Há outros casos clássicos, como do peixe-leão, uma ameaça para as espécies de peixes e invertebrados aquáticos de recifes de corais, na região da Reserva Extrativista (Resex) Marinha do Arraial do Cabo (RJ), a partir de 2014.
Por isso, tanto a autorização de cruzeiros, como a implementação destas estruturas artificiais exigem argumentos sustentáveis e projetos complexos de longa duração, com monitoria contínua, por causa da possibilidade de efeitos adversos. Hoje um case em observação de recifes artificiais está ocorrendo no Parque Nacional Marinho das Ilhas dos Currais, no Paraná, por exemplo, por meio do Projeto Rebimar, licenciado pelo Ibama, que tem como argumento proposta de recuperação da biodiversidade e de estoques pesqueiros. Expor à sociedade quais são os riscos envolvidos e as diferentes metodologias e técnicas também é papel da gestão pública e dos órgãos fiscalizadores.
*Sucena Shkrada Resk – jornalista, formada há 28 anos, pela PUC-SP, com especializações lato sensu em Meio Ambiente e Sociedade e em Política Internacional, pela FESPSP, e autora do Blog Cidadãos do Mundo – jornalista Sucena Shkrada Resk (https://www.cidadaosdomundo.webnode.com), desde 2007, voltado às áreas de cidadania, socioambientalismo e sustentabilidade.
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