Ernesto Samper, presidente da Colômbia entre 1994 e 1998 e secretário-geral da Unasul considera a América do Sul como a região do mundo que mais tem autoridade para propor uma abordagem distinta sobre a questão das drogas. Confira a entrevista completa!
Por Rodrigo Martins, da Carta Capital –
Em abril de 2016, a Assembleia-Geral da ONU realizará uma sessão especial em Nova York para debater o futuro das políticas antidrogas. Na ocasião, a União das Nações Sul-Americanas (Unasul) deverá apresentar uma posição conjunta sobre o tema, com propostas alternativas e enfoque na proteção aos direitos humanos. O diagnóstico é claro: a “guerra às drogas” fracassou. Não apenas foi incapaz de reduzir o consumo, a produção e o tráfico de entorpecentes como gerou graves danos colaterais, a começar pelo morticínio nas cotidianas ações de repressão. “Apesar de todos os esforços da atual política, temos mais de 300 milhões de consumidores”, afirma Ernesto Samper, presidente da Colômbia entre 1994 e 1998 e secretário-geral da Unasul.
CartaCapital: Qual será a posição defendida pela Unasul?
Ernesto Samper: Entendo que a região do mundo que mais tem autoridade para propor uma abordagem distinta sobre a questão das drogas é a América do Sul. Trata-se do continente com maior experiência na luta contra os entorpecentes, dentro da atual política proibicionista. Até agora foi uma experiência pautada em ações como a destruição de cultivos ilícitos, o controle do narcotráfico e a repressão militarizada. Mas surgem medidas alternativas, como a regulamentação do consumo da maconha no Uruguai e o tratamento das mulas do narcotráfico no Equador.
CC: É possível avaliar os impactos, positivos ou negativos, da experiência uruguaia? É uma política que poderia ser replicada?
ES: Não se pode dizer que a experiência de uma nação possa se repetir em outras. O que une os países do continente é a busca por alternativas não focadas simplesmente na proibição e na repressão. Apesar de todos os esforços da atual política, temos mais de 300 milhões de consumidores de drogas. Mas não pretendemos sair de um fundamentalismo proibicionista para um fundamentalismo legalizador.
CC: A “Guerra às Drogas” fracassou?
ES: O consumo e o tráfico geram violência. Mas a repressão também causa muitas mortes, e talvez seja o principal motivo da violência hoje. De modo geral, são as mulas e pequenos traficantes que têm sido presos e julgados. Temos erradicado os cultivos ilícitos, perseguido os consumidores, mas a região não faz o que é preciso para combater as organizações criminosas que comandam o narcotráfico. É preciso uma nova filosofia. Nem todos os países da América do Sul possuem uma legislação adequada para combater a lavagem de dinheiro. Tampouco há uma política uniforme de repressão ao narcotráfico.
CC: A quem interessa manter a política voltada para a proibição e a repressão?
ES: Os primeiros interessados, a meu ver, são os próprios narcotraficantes, pois o preço da droga é determinado pelo custo de produção, da matéria-prima, mais a lógica da repressão que existe hoje. Um camponês colombiano recebe apenas 5% do valor final de um grama de cocaína. Todo o resto, 95%, vai para os intermediários, os distribuidores. O negócio é essencialmente o perigo que ele carrega, o risco.
CC: Esse enfoque em direitos humanos quer dizer o quê, exatamente?
ES: Vamos tomar como exemplo a questão do consumo da droga. É preciso distinguir o consumo recreativo do vício. O consumo recreativo é um problema de costumes que demanda campanhas educativas. O vício tem a ver com políticas de saúde. Há também o consumo de maconha medicinal, que cria um problema de regulamentação. E existe o consumo ancestral dos povos indígenas, uma questão cultural. No tráfico, também há distinções. Há estudantes que vendem pequenas quantidades a seus colegas, são microtraficantes. Outro setor está preocupado em abastecer grandes mercados, como os Estados Unidos. Precisamos lidar com essas diferenças.
CC: Os Estados Unidos foram os principais patrocinadores da “Guerra às Drogas”, sobretudo na América Latina. O senhor identifica algum sinal de abertura do governo americano em relação ao tema?
ES: Sim. Quatro estados americanos legalizaram a produção e o consumo da maconha, ainda que para fins medicinais. A percepção sobre o tema tem mudado. Aliás, as grandes transformações do país sempre começaram pelos estados, e depois foram incorporadas por Washington. A abolição da escravatura, por exemplo, começou por iniciativa de algumas unidades da federação. Quando a Suprema Corte autorizou o casamento gay, várias regiões do país celebravam essas uniões. Ao menos na questão da maconha, que representa 60% do consumo de drogas ilícitas no mundo, acredito numa mudança de postura.
CC: Recentemente, o governo da Colômbia e as Farc anunciaram um acordo de paz, após meio século de um conflito que resultou em 220 mil mortes. Esse acordo pode ter consequências positivas no combate ao narcotráfico?
ES: Sem dúvidas. Ficou acertada a substituição social dos cultivos ilícitos por outros, como a palma africana. As Farc aceitaram revelar todas as rotas de exportação de droga que conhecem. Na história da Colômbia, o narcotráfico sempre financiou diferentes grupos armados, tanto a guerrilha quanto os paramilitares. As Farc associaram-se ao tráfico como estratégia de sobrevivência.
CC: Quando o senhor foi presidente da Colômbia, foi acusado de receber doações de campanha do narcotráfico. Que fim deu esse processo?
ES: Um indivíduo que cuidava da minha campanha havia recebido dinheiro de traficantes, ativos sujos do exterior. Ele foi processado e condenado. Obviamente, recebi ataques de todos os cantos, mas não tinha relação com isso. É um tema presente em todas as campanhas, especialmente nas eleições regionais da Colômbia. Nenhum país está livre de ver campanhas contaminadas por recursos ilícitos, a menos que tenha um sistema de financiamento público e exclusivo. (Carta Capital/ #Envolverde)
* Publicado originalmente na edição 872 de CartaCapital, com o título “Mais inteligência, menos tiroteios”.