Por Lucas Ferraz, da Agência Pública –
Desde a queda de um boeing da GOL em suas terras no Mato Grosso, os índios kayapó deixaram de plantar, caçar e construir aldeias na área da tragédia. Segundo a crença indígena, o território se tornou sagrado, pois lá moram os espíritos dos 154 passageiros mortos na tragédia.
A reportagem da Agência Pública foi atrás dessa história. Confira!
A comunidade kayapó que vive nas aldeias da terra indígena Capoto-Jarina, no norte do Mato Grosso, há muito deixou de consumir o mel das abelhas de uma extensa parte da floresta amazônica que cobre a região. Não pode caçar por ali nem fazer roças, e uma das 12 aldeias precisou mudar de lugar por causa do mekaron nhyrunkwa.
A casa ou cidade dos espíritos, que os índios kayapó denominam mekaron nhyrunkwa, é uma área considerada sagrada, quase nunca frequentada, onde estão os espíritos dos mortos. Ela pode ser um cemitério – indígena ou não – ou um lugar onde morreram muitas pessoas, como é o caso dessa região, palco de uma dos maiores tragédias da aviação brasileira.
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A queda de um Boeing 737 da Gol na região, em 29 de setembro de 2006, matando as 154 pessoas que estavam a bordo, inviabilizou cerca de 1.000 km2 da terra indígena, uma circunferência com um raio de 20 km – o que corresponde a pouco menos de um sexto do total da terra indígena.
Os destroços da aeronave continuam espalhados na floresta – e continuarão para sempre, numa área cujo município mais próximo é Peixoto de Azevedo, distante 740 km de Cuiabá.
Neste mês, mais de dez anos depois da tragédia, índios e companhia aérea formalizam a última etapa para o pagamento de uma indenização de R$ 4 milhões à comunidade de Copoto-Jarina. O acerto foi mediado pelo Ministério Público Federal.
Em dezembro foi concluído um laudo antropológico, exigência da Gol para identificar as lideranças indígenas responsáveis por assinar o acordo. “[As partes] já apreciamos o laudo, foi muito bem feito e atende completamente ao proposto. No momento está sendo redigido o acordo que será apreciado por todos os envolvidos, em seguida será marcada uma viagem até a terra indígena para a assinatura”, afirma o procurador Rafael Guimarães, de Barra do Garças, no Mato Grosso, responsável por acompanhar o desfecho do acordo extrajudicial.
Além de reparar os danos espirituais, medida considerada inédita, a companhia aérea compensará os índios por não ter retirado da floresta os destroços do avião.
Após idas e vindas, o compromisso da empresa foi oficializado num encontro na sede da Procuradoria-Geral da República, em Brasília, em outubro do ano passado.
Como se viu no recente acidente que matou o ministro do STF Teori Zavascki, no mar de Paraty, os donos do avião são os responsáveis por retirar os destroços da aeronave do local da queda, conforme determinação do Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa), da Aeronáutica.
Numa das reuniões sobre o caso, a empresa aérea alegou que a retirada dos destroços “implicaria um dano ambiental muito expressivo, superior à permanência deles na região”, e que a operação de logística para a retirada seria “extremamente difícil, arriscada, dispendiosa”.
Com a indenização, os índios concordaram com a permanência dos destroços na terra indígena – com ou sem eles, parte da área continuará sendo uma cidade dos espíritos, imprópria para o uso tradicional da comunidade, inclusive para as gerações vindouras.
Na tarde do dia 29 de setembro de 2006, uma sexta-feira, o Boeing da Gol que saiu de Manaus em direção ao Rio de Janeiro, com escala em Brasília, voava a 11 mil metros quando, perto das 17 horas, se chocou com um jato Legacy, que voava em sentido contrário em direção aos Estados Unidos. O Boeing perdeu a sustentação e caiu de bico numa área densa da floresta, desfazendo-se na queda – o que explica a extensa área onde se espalharam corpos e destroços do avião. Apesar das avarias, o Legacy conseguiu pousar na base da serra do Cachimbo, próxima do local.
O acidente abriu uma grave crise no setor aéreo. Além de falhas no controle do tráfego aeronáutico, a investigação do Cenipa apontou falha dos pilotos do Legacy, que trafegava com o alarme anticolisão desligado.
“Algumas pessoas ouviram o barulho, mas ninguém achou que era um avião caindo. Pensamos que era uma bomba do lado da serra do Cachimbo”, afirma o cacique Megaron Txucarramae. Horas depois, ele começaria a receber telefonemas de jornalistas e pessoas da região. O avião caíra por ali.
Nos 20 dias seguintes, Megaron integrou o grupo de indígenas kayapó que ficou acampado na beira do rio Jarinã para auxiliar os militares no resgate dos corpos.
Do rio até o principal ponto da queda da aeronave, onde ficou a maior parte dos destroços, os índios abriram uma picada de 7 km. Eles foram os primeiros a encontrar os corpos das vítimas, seis dias depois da tragédia.
Concluída a operação de resgate, no dia 22 de novembro de 2006, após a localização dos restos do último dos 154 mortos, os kayapó receberam apenas um certificado da Aeronáutica, que prestou homenagem a 20 indígenas que participaram do trabalho.
Somente em 2010, quatro anos depois do acidente, os índios – encabeçados pelo cacique Raoni, uma das lideranças mais famosas do Brasil, que já rodou o mundo ao lado de ícones do pop como o cantor Sting –, procuraram a Gol para que ela retirasse os destroços da terra indígena. Sem resposta, eles pediram auxílio ao Ministério Público Federal, que abriu um inquérito para apurar o episódio.
As tratativas do acordo extrajudicial duraram dois anos e contaram com encontros com lideranças espirituais que relataram sobre a privação da área, agora uma casa dos espíritos. Liderança espiritual da etnia, Bedjai Txucarramae afirmou numa das reuniões que os índios não devem nem mesmo circular pela área, sobretudo à noite, horário em que os kayapó acreditam que os espíritos saem pela mata (segundo a crença da etnia, os espíritos temem a luz do dia).
A interdição do espaço, segundo Megaron, é duradoura, kayoikot, para sempre.
Instituto Raoni
No laudo antropológico a que a reportagem da Pública teve acesso, a empresa informa a “concordância em pagar a indenização no valor pedido”, mas sob a condição de que isso significará a quitação integral dos danos causados pela queda da aeronave. Os índios concordaram.
O diretor jurídico do Grupo Gol, Maurício Queiroz, que participou das reuniões, é apontado por índios e procuradores como o responsável por convencer a empresa a pagar a indenização.
Procurada, a Gol afirmou que não se manifestar sobre o pagamento de indenizações e seus valores – vale também para os acordos já firmados com as famílias das vítimas do acidente. Alguns dos casos, contudo, ainda se arrastam na Justiça por discordância em relação aos valores oferecidos.
Os R$ 4 milhões da indenização da Gol serão depositados numa conta do Instituto Raoni, entidade sem fins lucrativos criada pelo cacique homônimo em 2001. Ela representa cerca de 2 mil índios que vivem na terra indígena, na região do baixo Xingu, entre Mato Grosso e Pará – o último censo do IBGE, de 2010, contou 1.004 pessoas vivendo no território, que tem 634 mil hectares. O Ministério Público Federal vai acompanhar a aplicação do dinheiro.
Os índios afirmam que vão utilizar a indenização para melhorias na terra indígena – estruturando as aldeias, comprando carros e maquinários, melhorando a vida da comunidade. Eles querem utilizar parte do dinheiro para se mobilizar com outras etnias numa campanha nacional contra as recentes ameaças aos direitos indígenas, exemplificadas na PEC 215, em trâmite no Congresso (que pretende transferir o poder da demarcação de terra do Executivo para o Legislativo) e na decisão do governo Michel Temer de alterar o rito das demarcações de terras, anunciadas e então revogadas após críticas da sociedade civil sobre a constitucionalidade da medida.
“Temos muito pelo que lutar a partir de agora. Mas a casa dos espíritos continuará lá, com as almas das pessoas. Já não há o que fazer, é uma área sagrada e temos apenas que respeitar”, diz o cacique Megaron Txucarramae.
* Publicado originalmente no site Agência Pública.