Por Orlando Milesi, da IPS –
Santiago, Chile, 7/12/2016 – Depois de 26 anos de governos democráticos, finalmente o Chile conta com uma lei de padrões internacionais que trata a tortura como crime, mas que ainda não é suficiente para alcançar o desejado “nunca mais”, segundo especialistas em direitos humanos. A presidente Michelle Bachelet promulgou, no dia 11 de novembro, uma lei que tipifica os crimes de tortura, tratamentos cruéis, desumanos e degradantes, fato que qualificou como “um passo decisivo na prevenção e erradicação definitiva da tortura” no Chile.
“Tudo bem que se promulgue essa lei e que em nível nacional possa se prevenir a tortura, que é o exigido pelas Nações Unidas. Mas para nós não significa nada”, afirmou à IPS Luzmila Ortiz. Ela era casada com o dirigente do Movimento de Esquerda Revolucionária (MIR), Jorge Fontes, detido no Paraguai em maio de 1975 e entregue em setembro à Direção de Inteligência Nacional (Dina), a polícia política da ditadura militar do general Augusto Pinochet (1973-1990).
A Dina o repatriou ao Chile, onde o sociólogo foi torturado e desaparecido em janeiro de 1976, dentro da Operação Condor, um plano coordenado das ditaduras militares do Cone Sul americano, que incluía a vigilância, detenção, tortura, traslado para outros países, desaparecimento e morte de opositores a esses regimes.
“Destruíram nossa vida e essa é uma ferida que não se fecha enquanto não soubermos o que aconteceu com ele. É algo atroz e está pendente não só para mim, mas também para meu filho”, destacou Ortiz. Com tristeza recordou que em Villa Grimaldi, um emblemático centro de detenção ilegal e torturas, “cometeram atrocidades com ele. Esteve preso em uma casinha de cachorro. É uma dor tão profunda que não se pode superar”, acrescentou.
Para Cath Collins, diretora do Observatório de Justiça Transicional da Universidade Diego Portales, a nova lei é bem-vinda, mas “nenhuma lei pode, por si só, assegurar um nunca mais”. E ressaltou que “para isso são necessários esforços em muitas áreas, entre elas, mudar as culturas institucionais e as práticas diárias nas forças armadas, na polícia, na custódia carcerária e em outras entidades estatais”.
O “nunca mais” foi uma demanda dos grupos de vítimas de violações de direitos humanos, assumida no informe Verdade e Reconciliação, elaborado em 1991, um ano depois do retorno da democracia ao país. Ali foi conceituado que não pode haver reconciliação se não se sabe a verdade e que é preciso conhecer todos os casos como requisito para que nunca mais se repitam violações dos direitos humanos no Chile.
Collins apontou que, para avançar para o fim da tortura, é necessário “eliminar todo vestígio de tolerância ou normalização de ações de brutalidade, casuais ou sistêmicas, e também romper com a cultura da negação e da impunidade”. Entretanto, alertou que “tampouco bastam intervenções institucionais”. “Tanto as autoridades como a sociedade civil devem educar, e se educar, a favor da ética e do respeito, e contra o autoritarismo, a prepotência, a agressão e a violência verbal e física que muitas vezes invadem nossas interações sociais e relações diárias”, destacou.
Apesar de suas limitações, a lei permite ao Chile se apresentar com essa tarefa realizada, quando for celebrado, no dia 10, o Dia Internacional dos Direitos Humanos, que precisamente este ano tem como tema a necessidade de todos terem um papel ativo na defesa dos direitos dos demais, parte da nova ética que deve ser criada nesse país, pontuou Collins.
Nelson Caucoto, advogado de direitos humanos defensor de numerosas vítimas da ditadura, opinou que a nova lei que tipifica a tortura “protege de uma maneira melhor os direitos fundamentais”. “Cada medida que signifique uma ampliação, um reconhecimento, proteção e garantia dos direitos humanos, é uma forma de construir esse grande edifício do ‘nunca mais’. Reconhecer cabalmente o fenômeno da tortura como um grave crime, que deve ser desterrado e punido com penas proporcionais a essa gravidade, é parte da obrigação estatal de não repetição desses atos no futuro”, ressaltou à IPS.
Caucoto acrescentou que “o tema da tortura e dos torturados no Chile é um dos parentes pobres dessa luta para que sejam respeitados os direitos humanos em uma ditadura. Pinochet acabou preso em Londres por casos vinculados à tortura, enquanto no Chile não havia julgamento contra ele por esse motivo”. Em 2004, a Comissão sobre Prisão Política e Torturas conseguiu que pouco mais de 40 mil chilenos fossem qualificados como vítimas desse crime. O número é muito inferior ao estimado por organizações de direitos humanos, que garantem que meio milhão de chilenos foram vítimas de tortura durante a ditadura, acrescentou.
O mortos por violência política durante a ditadura militar foram 2.920, os desaparecidos 1.193, os torturados 40.280, e os exilados um milhão, segundo dados institucionais. Dos desaparecidos, foram identificados os restos de 167, de acordo com o Instituto de Medicina Legal.
Para Leopoldo Montenegro, membro do espaço de memória do Londres 38, outro emblemático centro de detenção ilegal e torturas da ditadura, a nova legislação tem uma “relevância absoluta”. Mas ressaltou que ainda prevalece a “carência por parte do Estado de tomar decisões fortes a respeito de temas de justiça, restituição, reparação e medidas de não repetição”. Ele explicou à IPS que a nova lei tem um impacto preventivo, mas para o “nunca mais” o elemento mais importante tem a ver com a justiça. Isso requer “que os tribunais acolham os processos das vítimas de tortura e punam os culpados. Nesse sentido só houve resoluções simbólicas”.
Destacam-se duas sentenças ditadas pelo juiz Alejandro Solís nos casos de 23 sobreviventes de Villa Grimaldi, agora convertido em um Parque pela Paz e Memória, e outros 19 de Tejas Verde, outro centro ilegal de detenção e tortura.
Caucoto destacou como positivo o anúncio de Bachelet de criar um Mecanismo Nacional de Prevenção da Tortura, “o que é exigido pelo Protocolo Facultativo da Convenção (internacional) Contra a Tortura e Outros Tratamentos Cruéis, Desumanos e Degradantes”. O advogado acrescentou que “é importante a sua criação, porque no Chile não existe nenhum órgão com as faculdades necessárias para prevenir a tortura. É preciso destacá-lo como um grande avanço”.
No entanto, Montenegro defende a adoção de medidas para criar condições de uma política de “nunca mais” e alertou para a falta de vontade do Estado “de levar adiante políticas públicas de justiça a respeito dos crimes cometidos na ditadura”. Para Collins, “o ‘nunca mais’ exige uma mudança cultural e de nossa mentalidade em relação à aceitação de se infligir violência, ou tolerar passivamente que seja infligida em nosso nome. Não importa que se trate do opositor político de então, ou do suposto ‘delinquente’ de hoje”.
Um informe anual do Programa de Direitos Humanos do Ministério do Interior indica que, em 1º de dezembro de 2015, havia 1.048 processos abertos nos tribunais por violações dos direitos humanos. São 1.373 ex-agentes da ditadura processados, dos quais 344 estão condenados. Há 177 em prisão efetiva, 58 com benefícios extracarcerários e seis em liberdade condicional.
No entanto, Ortiz carrega seu drama e a doença psicológica de seu filho, hoje com 45 anos, “que tinha dois anos e meio quando testemunhou minha prisão (quando sua casa foi invadida em busca do marido), depois de ser separado de seu pai. Ele está afetado desde então”, afirmou.
Seu caso, rejeitado pela justiça chilena, está pendente na Corte Interamericana de Direitos Humanos, “onde há muitos outros processos e praticamente já não há esperanças”. Ortiz lamentou que “sempre há mecanismos legais para proteger aqueles que foram os autores. O importante é levantar a proteção que segue vigente para os torturadores”.
Bachelet, também vítima
A presidente socialista Michelle Bachelet, que já governou o Chile entre 2006 e 2010, e que assumiu o segundo mandato em 2014, foi vítima da repressão da ditadura do general Augusto Pinochet. Seu pai, o general de aviação Alberto Bachelet, que enfrentou o golpe militar, morreu em março de 1974 em uma prisão de Santiago, vítima de parada cardíaca devido às torturas infligidas por seus subalternos, segundo foi determinado oficialmente em 2012.
Após a detenção e morte de seu pai, tanto Bachelet quando sua mãe, Ángela Jeria, passaram para a clandestinidade até serem detidas e levadas para Villa Grimaldi em 1975, antes de serem forçadas ao exílio, do qual a agora presidente regressou em 1979. Em 2002, se converteu na primeira mulher ministra da Defesa na América Latina. Envolverde/IPS
* Este artigo é parte da cobertura da IPS pelo Dia Internacional dos Direitos Humanos, celebrado em 10 de dezembro.