Por Claudia Wallin, para o Diário do Centro do Mundo –
O lixeiro sueco Mats Björnborg finalmente retorna meu telefonema, depois de duas semanas de espera. “Estava de férias”, desculpa-se ele. Agradeço a ligação, e pergunto onde foi o merecido descanso. “Fui esquiar em St. Anton, nos Alpes austríacos”, responde Mats, sem a mais pálida idéia da convulsão catatônica que sua declaração poderia desatar nos seletos círculos de brasileiros já arrepiados diante da possibilidade de esbarrar com o porteiro em Nova York.
Para as patroas, seria talvez recomendável um botox emergencial contra rugas de expressão, diante da revelação dos hábitos da minha ocasional faxineira: Beata, parte do contingente de poloneses que veio ganhar a vida na Suécia nos últimos anos, costuma passar as férias de verão na Grécia. Horror, horror.
São cenas da vida real em uma sociedade menos desigual, onde a diferença entre os mais ricos e os mais pobres não costuma ser abissal, e na qual o princípio da dignidade humana e do acesso a direitos básicos do cidadão não é restrito aos salões daqueles que se julgam mais escolhidos por Deus do que o povo de Israel.
Vou ao encontro do lixeiro Mats em um aconchegante café da ilha de Södermalm, no centro de Estocolmo. É o lugar habitual da pausa diária de meia hora que ele faz com os companheiros de trabalho, e ao redor da mesa oito lixeiros conversam animadamente.
A poucos passos dali, fica o apartamento alugado de quarto e sala que Mats mantém como base na cidade. (Aqui, um vídeo do apartamento.) A cerca de 40 quilômetros de Estocolmo, como vejo nas fotos do smartphone que ele acaba de sacar do bolso, o lixeiro divide com a mulher uma casa em madeira com 250 metros quadrados de área, sauna e uma pequena piscina.
“Se eu tenho idéia do que seria a minha vida em uma sociedade menos igualitária? É claro que sim”, diz Mats.
“Porque em uma sociedade desigual, nem todos têm direito a uma vida digna. Também sei que em uma sociedade menos igualitária, as pessoas têm que morar trancadas em condomínios, atrás de muros e guardadas por seguranças, para se proteger dos pobres que não têm nada. Como imagino que seja o Brasil.”
“Aqui (na Suécia), você raramente vê a polícia, e existe menos violência”, ele acrescenta. “E os policiais são ok. Ninguém tem medo de atravessar a rua em frente a um carro da polícia, nem mesmo quando o sinal está fechado para o pedestre.”
Filho de um mecânico de automóveis e uma secretária, Mats tem 55 anos de idade e há 35 trabalha em um dos caminhões de coleta de lixo na capital sueca.
“Muitas pessoas não planejam exatamente suas vidas, e acabam parando em algum lugar na sociedade”, ele diz, entre lentos goles de café.
“No meu caso, eu tinha acabado de cumprir o serviço militar e procurava emprego, quando encontrei um amigo que fazia serviço temporário numa empresa de coleta de lixo. Minha idéia era trabalhar lá durante o verão. Mas acabei ficando.”
É um bom emprego, como diz Mats. O salário é de 34 mil coroas suecas, o equivalente a cerca de 11,7 mil reais por mês. É pouco menos do que ganha a sua mulher, que recebe 40 mil coroas suecas como médica veterinária. Juntos, os dois dividem todas as contas – incluindo o aluguel do apartamento na cidade, no valor de 6,7 mil coroas suecas, e os pagamentos do financiamento da casa.
Depois de quitar as contas do mês, sobram no bolso de Mats aproximadamente 10 mil coroas suecas para comprar alimentos e cobrir outros custos, como idas eventuais a restaurantes e teatros. Ou ainda os gastos com seu hobby favorito: comprar peças avulsas e reformar sua mutante coleção de motocicletas da linha Harley-Davidson. Atualmente, ele tem quatro na garagem de casa.
“Não tenho filhos, mas isso não afetaria minha situação econômica de forma significativa. Porque toda criança na Suécia tem acesso a médicos, dentistas e educação gratuita, além de uma ajuda de custo mensal do governo”, observa ele.
No dia seguinte, reencontro Mats para fazer a ronda do fim do expediente. Na cabine do caminhão de lixo, ele está acompanhado pelo colega Niklas, um másculo cidadão que trabalha de saias e blazer.
No primeiro prédio em que entramos para o recolhimento das caçambas, Mats diz: “Eu ganho mais para entrar aqui, porque o lixo fica do outro lado do pátio”.
Como assim?
“Porque eu tenho que caminhar mais, então ganho mais para isso”.
Como assim?
“A minha empresa tem uma lista detalhada de todos os locais por onde passamos, que inclui informações sobre as distâncias que temos que percorrer desde a porta do prédio até o local onde recolhemos o lixo”, diz Mats, que é funcionário de uma das empresas privadas que fazem a coleta de lixo na cidade.
“Em Estocolmo, não é permitido depositar caçambas ou sacos de lixo nas calçadas. Então, em alguns prédios preciso dar 15 passos para chegar até o depósito de lixo. Em outros, 20 passos. Está tudo documentado. E se em alguns lugares eu precisar abrir alguma porta trancada a chave para recolher o lixo, ganho 40 öre (centavos) extras”, acrescenta ele, destacando a força dos sindicatos suecos. De volta à cabine do caminhão, vejo centenas de chaves, e desisto do cálculo mental.
O dia de Mats começa às 5:30 da manhã, quando ele chega à garagem dos caminhões da empresa. “Tomamos um café, lemos os jornais e às 6 horas começamos o trabalho”, ele conta.
A jornada de trabalho dura cerca de sete horas, de segunda a sexta-feira. E como todo sueco, Mats tem direito a cinco semanas de férias por ano.
Em impostos, ele paga cerca de 30% sobre o valor do salário. E como qualquer cidadão, tem direito a um sistema de saúde amplamente subsidiado, em que uma internação hospitalar custa 80 coroas suecas – o equivalente a menos de 30 reais.
“E por que o sujeito que limpa as ruas não deveria ter direito à saúde? Por que as pessoas não deveriam ter as mesmas oportunidades? Por quê?”, repete Mats.
“Todos têm o mesmo valor. Ninguém é melhor do que ninguém. Todos nós somos seres humanos. Eu trabalho duro, e sou bom no que faço. Algumas pessoas nascem em famílias mais pobres. Mas todos na Suécia podem construir sua própria vida.”
Já foi melhor: como as estatísticas da OECD apontaram recentemente, a Suécia vem registrando o mais rápido crescimento da desigualdade, em relação aos demais países europeus. O sentimento de exclusão é particularmente forte nas classes mais baixas, cada vez mais formadas por famílias de imigrantes que chegam ao país.
“A Suécia atravessa um período de mudanças”, diz a cientista política Jenny Madestam, da Universidade de Estocolmo.
“A sociedade sueca não gosta de desigualdade, porque desigualdade é sinônimo de injustiça. E ainda somos uma sociedade extremamente igualitária, uma vez que estávamos bastante à frente dos demais países europeus. Mas estamos de certa forma deixando de ser um modelo extremo. Isso não significa que queremos um sistema como o do Brasil, e sim que estamos ficando mais parecidos com outros países europeus”, ela acrescenta.
Além de oito anos consecutivos de governo da aliança de centro-direita, Madestam observa que a social-democracia sueca – reconduzida ao poder em setembro passado – caminha na direção de uma política mais centrista, em meio a uma nova realidade também influenciada pelos processos que se desenvolvem na ordem global.
“Temos que aguardar para ver se o novo governo social-democrata da Suécia irá retornar às raízes do movimento, ou se vai se posicionar mais ao centro do espectro político”, diz a cientista política.
Com o gorro que diz “Lixeiros de Estocolmo”
A própria sociedade se transforma, avalia Jenny Madestam. E o debate sobre alguns princípios sagrados da ideologia sueca, como a relativamente baixa diferença entre os salários das diferentes categorias profissionais, começam segundo ela a deixar de ser tabu. Atualmente, já se discute a possibilidade de um maior grau de diferenciação salarial.
“As novas gerações começam a questionar uma ideia fundamental da sociedade sueca: a de que ninguém deve ganhar substancialmente mais do que ninguém, tanto no setor público como no privado, e incluindo aqueles que optam por carreiras que exigem períodos mais longos de estudos e formação. A cultura sueca é a de que você pode ter mais status, mas não deve ganhar muito mais do que os outros. Aparentemente, no entanto, muitas pessoas vêm se tornando mais individualistas”, indica a cientista política.
O salário médio (sem adicionais ou horas extras) de um policial ou de um professor é de cerca de 30 mil coroas suecas, segundo dados de 2013. Uma enfermeira recebe em média cerca de 27 mil coroas, e um médico aproximadamente 45 mil coroas.
Pode ser que alguns estejam insatisfeitos pelo fato de não ganharem muito mais do que os profissionais que passaram por um período mais curto de formação educacional – diz Robin Travis, chefe da seção de Política e Direito do Serviço de Pesquisas do Parlamento sueco:
“Mas por um lado, é preciso notar que enfermeiras, assim como policiais, por exemplo, recebem mais por gratificações por horas extras ou adicionais noturnos. E por outro lado, é extremamente bom para a sociedade que o sujeito comum tenha dinheiro. Porque dessa forma ele se torna um consumidor, com potencial de criação de empregos para outras pessoas”, argumenta Travis.
Pelos números da Agência Central de Estatísticas da Suécia (Statistiska centralbyrå), o salário médio no país é de 27,3 mil coroas suecas mensais (aproximadamente 9,6 mil reais).
“Apenas 10% da população sueca ganha salários superiores a 43,3 mil coroas suecas mensais. Noventa por cento dos trabalhadores recebem quantias inferiores a este valor”, diz Daniel Widgren, analista da agência.
Pergunto a Jenny Madestam qual é o salário médio de um cientista político como ela.
“Cerca de 35 mil coroas suecas”.
É quase o mesmo que ganha um lixeiro em Estocolmo, comento.
“Sim, exatamente”.
Acha injusto ganhar quase o mesmo que um lixeiro?
“De alguma forma, pode parecer estranho um sistema no qual as carreiras que exigem um longo período de formação, como a minha, não sejam mais bem remuneradas. Por outro lado, tenho muito mais liberdade em meu trabalho do que teria em funções que não exigem o mesmo grau de escolaridade”.
“Seja como for, qualquer mudança significativa no sistema salarial seria uma batalha a ser travada com os combativos movimentos trabalhistas suecos”, pontua Madestam.
* Claudia Wallin é jornalista, radicada em Estocolmo, é autora do livro Um país sem excelências e mordomias.
** Publicado originalmente no site Claudia Wallin.