Por Márcia Pinheiro*, que gentilmente cedeu a republicação –
Aos 53 anos, respeitado professor na Universidade de Illinois torna-se mulher e revoluciona a teoria econômica
Deirdre McCloskey é uma autêntica Chicago Girl, respeitadíssima por seus estudos em retórica econômica, que provocaram rebuliço no meio acadêmico a partir da metade dos anos 80. Professora na Universidade de Illinois e na Universidade de Erasmo, em Rotterdam (Holanda), ensinou uma geração inteira de brasileiros, entre 1968 e 1980, que voltaram ao Brasil repetindo os modelos monetaristas e,para os críticos, não humanistas, como prescrição para as mazelas da economia brasileira. Muitos deles fizeram parte dos quadros governamentais e ajudaram a moldar o Brasil de hoje.
O livro Crossing, A Memoir narra todo o processo de mudança de sexo de Deirdre. O curioso é que, então, Deirdre era Donald, professor Donald McCloskey, descrito como um homem afável, másculo e de barba cerrada. Também chama atenção que, até 1983, quando publicou o revolucionário artigo A Retórica da Economia, era considerado um monetarista ultra-ortodoxo, mais afeito aos estudos de microeconomia. Houve um turning point na sua vida, a partir de suas ideias sobre a retórica alguns de seus ex-alunos consideram Deirdre uma candidata natural ao Prêmio Nobel e de sua decisão de mudar de sexo, em 1995.
Por e-mail à revista CartaCapital, Deirdre contou que, desde os 11 anos de idade, gostava de se fantasiar de mulher. Tentou, em vão, esquecer o cross-dressing (vestir-se como o sexo oposto). Casou-se muito jovem, aos 22 anos, com uma moça a quem amava. Vieram os dois filhos, a família completa, a reconhecida carreira acadêmica, a dedicação à retórica econômica, a suposta felicidade. Mas o então Donald vivia atormentado por um dilema sexual. Queria ser mulher, usar maquiagem e colares, muito mais atrevidos do que as mulheres ousavam.
A excentricidade foi até tolerada pela esposa, Joanne McCloskey, professora de enfermagem em Iowa. Mas, involuntariamente, como diz, o pensamento ganhou forma. Ele pertencia ao mundo feminino, menos por razões de desejo sexual, mais por identificação. Fazendo uma analogia com pessoas que optam por assumir outra nacionalidade, Deirdre diz que, como americano, poderia migrar para o Brasil. Nunca teria um português perfeito, sem sotaque. Nunca esqueceria que fora, um dia, americano. Mas, por um imperativo superior, precisava atravessar a fronteira. No seu caso, houve a travessia da fronteira sexual, não para transgredir; para viver entre suas iguais, e feliz.
O estalo aconteceu aos 53 anos, 31 de casado, tarde demais para desistir da mudança de destino. Não era homem disso. Mudaria de sexo. Procurou os melhores especialistas, entre Iowa e Dallas (eletrólise para a remoção dos pelos), São Francisco (cirurgia maxilar), Filadélfia (intervenção nas cordas vocais) e Austrália (mudança dos órgãos genitais). Todo o processo custou US$ 90 mil e durou três anos, em meio aos quais foi abandonado pela esposa e pelos filhos. “Eles nunca me amaram”, conclui Deirdre, que desde a decisão nunca mais foi procurada pela ex-mulher e pelos dois filhos, hoje na faixa de 30 anos.
“Minha mãe levou cinco minutos para se habituar à ideia, e me apoiou. Meu irmão demorou só um pouquinho a mais para aceitar a mudança. Minha irmã (Laura, professora de psicologia na Universidade do Arizona) teve problemas. Agora estamos bem”, diz. Deirdre conta que a irmã lançou mão da via judicial, por duas vezes, para tentar interná-la em hospitais psiquiátricos. Na segunda vez, Deirdre estava participando de uma reunião da Associação da História da Ciência Social, quando a polícia a levou para um hospital. Foi liberada no dia seguinte.
Já o conhecido pragmatismo americano deu o tom da receptividade da comunidade acadêmica ao novo gênero do docente. Enquanto Donald, o professor não era nada feminino, por isso seus colegas ficaram surpresos. Mas ninguém pareceu se importar muito, relata Deirdre. O reitor da universidade disse: “Graças a Deus! Pensei que você fosse confessar que se converteria ao socialismo!” E complementou: “Isto é ótimo para nosso programa de ação afirmativa”. Ele continuou sendo seu amigo, defendendo-a de eventuais agressões.
A travessia sexual de Deirdre é narrada no livro Crossing, A Memoir (Travessia, Uma Biografia), só traduzido no Japão. Claramente, ela afirma que não estava em busca de experimentações existenciais ao decidir mudar de sexo esta versão corria entre seus discípulos nos anos 90. “A questão é profunda. Seres humanos não são como vasilhas que se preenchem com experiências. Não tomei uma decisão baseada no custo-benefício”, diz.
Tampouco foi um impulso de natureza exclusivamente sexual. Para ela, sexualidade é um termo ligado a amor e identidade, não tanto a orgasmos. Mas não hesita quando fala de seu desejo, hoje direcionado a homens heterossexuais, e como boa parte das mulheres de meia-idade reclama da falta de pretendentes. “Os homens da minha idade preferem mulheres jovens, bobinhas e de baixa estatura”, diz, apesar de confessar ter esperança de, no próximo ano, como professora convidada em Roterdã, encontrar um holandês alto e bem-sucedido.
No flanco das ideias econômicas, Deirdre hoje se define como uma Chicago Girl não ortodoxa. É adepta ferrenha do neoliberalismo; considera que o capitalismo resolve quase tudo. Mas surpreende ao defender uma reforma agrária mais assertiva no Brasil, com distribuição de terras para os camponeses fazer o que quiserem com elas: explorar, vender ou arrendar.
Também aconselha um choque de educação no País, a exemplo do que ocorreu na Coreia do Sul. E recomenda às senhoras que compram na Daslu – horrorizou-se com um artigo sobre o megatemplo de compras na imprensa de Chicago – que abandonem seus brinquedinhos de consumo e suas casas confortáveis, uma única vez, e alfabetizem as crianças pobres da Bahia.
No momento, Deirdre finaliza seu próximo livro, The Bourgeois Virtues: Ethics for an Age of Capitalism (As Virtudes Burguesas: Ética para uma Era do Capitalismo), a ser publicado no início de 2006. Nesse trabalho, ela sustenta que há mais do que a Prudência no mundo da economia. Existem seis outras virtudes: Justiça, Moderação, Amor, Coragem, Esperança e Fé, ideias que devem agitar Chicago, já habituada à heterodoxia sexual e econômica de Deirdre.
*Esta entrevista concedida à jornalista Márcia Pinheiro foi publicada originalmente na revista Carta Capital em 2005.