Os cinco “pês” estruturantes dos ODS – Pessoas, Planeta, Prosperidade, Paz e Parceria – precisam operar nas localidades, ou seja, nos territórios onde a vida das pessoas acontece
As cidades têm sido apontadas como o “Armagedom da Sustentabilidade” ou como os “buracos negros” para onde todos os recursos naturais são drenados sem possibilidade de restauração. Estas são metáforas fortes para um fato elementar – não haverá desenvolvimento sustentável, adaptação e mitigação, justiça social e combate a desigualdades se a lógica da urbanização continuar a negar um dos princípios mais caros à natureza: seu caráter sistêmico e sua capacidade de regeneração. Falamos aqui de regeneração no sentido mais amplo, que engloba os recursos naturais e também o tecido social.
Conferências como a COP21 e a Habitat III, juntamente com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) acordados na Cúpula da ONU em setembro de 2015, mostram o esforço de concertação das lideranças mundiais e do sistema multilateral em estabelecer metas previamente aceitas pelas nações, para que nas próximas décadas possamos mitigar os efeitos da mudança climática e da abissal desigualdade social.
Já em seu Preâmbulo, o documento sobre os ODS, também chamada de Agenda 2030, afirma no segundo parágrafo: “Todos os países e todas as partes interessadas, atuando em parceria colaborativa, implementarão este plano. Estamos decididos a libertar a raça humana da tirania da pobreza e da penúria e a curar e proteger o nosso planeta. Estamos determinados a tomar as medidas ousadas e transformadoras que são urgentemente necessárias para direcionar o mundo para um caminho sustentável e resiliente. Ao embarcarmos nesta jornada coletiva, comprometemo-nos que ninguém seja deixado para trás.”
No entanto, se fizermos uma análise cuidadosa das políticas preconizadas, a grande maioria delas depende de políticas urbanas para sua implementação. Portanto, uma das partes interessadas mais relevantes são os governos locais – as Cidades. A Nova Agenda Urbana, principal documento produzido pela Habitat III, demonstra que os cinco “pês” estruturantes dos ODS – Pessoas, Planeta, Prosperidade, Paz e Parceria – estabelecem políticas públicas que precisam operar nas localidades. De que localidades falamos? Certamente das cidades, mas, mais do que isso, falamos dos territórios onde a vida das pessoas acontece, dos distritos e dos bairros.
Os ODS constituem-se, portanto, como um conjunto de metas que só farão sentido se forem traduzidos em políticas públicas, interdisciplinares, interdependentes e sistêmicas. De nada valerá o esforço isolado de implementação das metas do ODS 11, relativo às cidades, se não estiverem devidamente articuladas com os outros 16. Portanto os ODS reúnem princípios de direitos fundamentais integrados a um conjunto de propostas de políticas públicas a serem contemplados em programas robustos de governo e que possam dialogar com as dinâmicas locais.
Recentemente, a Rede Brasileira de Cidades Sustentáveis produziu um documento intitulado Guia GPS – Indicadores do Programa Cidades Sustentáveis e Orientações para o Plano de Metas que integra de forma consistente e extensiva os 12 Princípios das Cidades Sustentáveis com os 17 ODS, e – no melhor tratamento sistêmico – demonstra que, para cada um dos 12 princípios, há mais do que um conjunto de metas a serem contempladas. Isso mostra o sentido transversal, interdisciplinar e material da Agenda 2030. Outro aspecto importante deste documento é que procura traduzir os princípios e metas em indicadores mensuráveis, constituindo-se como sólida orientação para gestores públicos.
Mas todos esses esforços de convergência, integração e materialidade só surtirão efeito se ao menos duas premissas forem incorporadas. A primeira delas refere-se à inteligência local, das pessoas em seu território e como são legitimadas no processo de tomada de decisão. Os ODS só serão atingidos se funcionarem como elementos catalisadores e de transformação cultural das realidades locais para o conjunto da municipalidade. As cidades, na condição de organismos complexos, têm um grau de auto-organização pouco compreendido pelos agentes públicos. Nesse processo, soluções criativas e inovadoras surgem, inspiram e transformam. Os conselhos municipais e os movimentos já existentes precisam ser potencializados, tornando-se espaços de metabolização entre a inteligência local e o fazer público.
A segunda premissa decorre do imperativo de transformação profunda das estruturas públicas responsáveis pela implementação destas agendas. O aspecto fragmentado da gestão pública, profundamente eivado de estruturas arcaicas, condicionado a interesses políticos partidários, precisa ser atualizado à luz dessa nova concepção de cidades. O mundo clama por justiça social e sustentabilidade, e a inação tornará dolorosamente realistas as metáforas citadas no início deste texto.
*Consultor em gestão sustentável e pesquisador no campo de inteligência urbana, empresas e cidades sustentáveis. Preside o Conselho do Instituto Ethos e do IDS