Economia

Entrevista - Susan Prescott - "Defensores de ultraprocessados estão do lado errado da História"

por João Peres — O Joio e o Trigo/Carta Capital – 

Para a pediatra, desenvolvimento de produtos e o marketing na indústria de alimentos conflitam com a luta contra doenças crônicas não transmissíveis

A pediatra e professora Susan Prescott, da Austrália, rompeu, no final de 2017, o contrato com a Nestlé em meio aos ataques a Carlos Monteiro, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP, coordenador do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens) e idealizador da classificação de alimentos NOVA, base do atual Guia Alimentar para a População Brasileira.

As críticas ao sistema de separação por grau de processamento partiram de cientistas com laços financeiros com a transnacional, o que foi a gota d’água para a pesquisadora.

Susan Prescott

Ela integrou por mais de uma década o Conselho Consultivo do Instituto Nestlé para a Austrália e a Nova Zelândia. E abriu mão do cargo quando leu um artigo publicado no American Journal of Clinical Nutrition pelo grupo encabeçado por Michael Gibney, pesquisador da Universidade de Dublin, na Irlanda. “Alimentos processados na saúde humana: uma avaliação crítica” é um ataque frontal à classificação NOVA, proposta em 2009 por Monteiro, com o objetivo de separar os alimentos por grau de processamento: in natura e minimamente processados; processados; ultraprocessados; e ingredientes culinários.

Tratamos desse assunto recentemente, com a visão de Monteiro de que o artigo articulado por Gibney cometeu falhas e omissões muito sérias, e a recusa do American Journal em publicar uma resposta, num caso que expõe as relações entre organizações científicas e corporações.

A organização é uma defensora dessas corporações. Já chegou a administrar a emissão de um selo positivo que decorou embalagens de cereais altíssimos em açúcar, entre outros ultraprocessados.

Por outro lado, a NOVA propõe uma divisão bem clara entre processados e ultraprocessados. Contudo, os detratores da classificação normalmente apagam essa linha, o que faz com que pareça que a ideia seja contra a industrialização pura e simples.

Além do artigo, outros ataques ao pesquisador brasileiro vieram recentemente. Em outubro passado, o Congresso Internacional de Nutrição, realizado em Buenos Aires, na Argentina, teve como mote para um dos simpósios de abertura o tema “Alimentos processados: tecnologia alimentar para uma melhor nutrição”.

Nossa reportagem acompanhou as apresentações in loco e ficou evidente a orquestração contra Monteiro e a NOVA, com pancadas acima do tom para os padrões do cauteloso universo científico.

“Eu sempre me questionei profundamente sobre os aspectos conflitantes de muitas corporações multinacionais”, disse a O joio e o trigo Susan Prescott, diretora do inFLAME Global Network, organização que reúne pesquisadores de várias partes do mundo interessados no impacto do ambiente sobre a diversidade da microbiota intestinal.

A seguir, trazemos a entrevista realizada com Susan Prescott, uma pediatra que propõe a visão integrada do corpo e do ambiente.

O joio e o trigo: Quando você viu pela primeira vez a classificação NOVA, qual foi sua reação? Mudou a maneira como você entendia a obesidade e as doenças crônicas?

Susan Prescott: Conheço a classificação há alguns anos. O professor Monteiro e seus colegas produziram uma maneira simples, porém efetiva de separar as formas de processamento de alimentos que são essenciais para a alimentação em nível global daqueles que no geral não são saudáveis.

Esse sistema evita o escapismo e a desonestidade intelectual que confunde o “processamento” da fermentação ancestral e do salmão enlatado com produtos ultraprocessados repletos de aditivos. Esses são uma soma de componentes isolados de alimentos, frequentemente elaborados com ingredientes não nutritivos.

Na classificação NOVA, os alimentos ultraprocessados são aqueles geralmente conhecidos do público como não saudáveis. É simples. E separa, retira os alimentos minimamente modificados do grupo das bebidas açucaradas, dos biscoitos, dos salgadinhos, das refeições prontas congeladas.

As evidências científicas acumuladas nos últimos quatro anos mostram que a classificação NOVA pode ser associada às doenças crônicas não transmissíveis.

Por muitos anos, aos consumidores foi dito que os aditivos nos ultraprocessados são seguros. No entanto, pesquisas relacionadas ao microbioma intestinal lançaram dúvidas sobre isso. Para além dos óbvios macronutrientes – açúcar e óleos vegetais – ingredientes como emulsificantes, adoçantes artificiais, sódio, carragenina, proteínas vegetais isoladas foram todos associados a distúrbios no microbioma de animais.

O joio e o trigo: Por quanto tempo você esteve no Conselho Consultivo do Instituto Nestlé? Acredita que suas metas iniciais foram alcançadas?

SP: Estive no Conselho Consultivo do Instituto Nestlé para Austrália e Nova Zelândia por mais de dez anos. Como pediatra e pesquisadora universitária, o foco do meu trabalho foi a alimentação no início da vida e a prevenção de doenças. Como clínica que trabalha com crianças, não é difícil ver como as escolhas alimentares e o estilo de vida são um ponto fulcral na saúde e no bem-estar.

Enxerguei esse trabalho como uma oportunidade de compartilhar minhas perspectivas e esperava influenciar consciências e atitudes. Encontrei e trabalhei com um monte de gente boa, que genuinamente se importava com a saúde e a nutrição de jovens famílias e com a redução de desigualdades. Eu me envolvi em muitos programas educacionais e em oficinas de treinamento de profissionais de saúde ao redor do mundo.

O joio e o trigo: Por que você decidiu renunciar ao cargo?

SP: Sempre me questionei profundamente sobre os aspectos conflitantes de muitas corporações multinacionais, especialmente aquelas envolvidas no fornecimento de produtos em nível global. De um lado, você tem o slogan “Nós alimentamos o mundo”, e não há dúvida de que a desnutrição e a má nutrição são inaceitavelmente altas.

As empresas estão trabalhando para melhorar essa questão e deveriam ser elogiadas por isso. Mas o desenvolvimento de produtos e o marketing estão frequentemente em conflito com a maior ameaça para a saúde humana, que são as doenças crônicas não transmissíveis.

A produção e a disseminação global de ultraprocessados estão causando obesidade e muitas das doenças crônicas que estamos tentando prevenir. Isso sempre foi um elefante na sala.

É ainda mais problemático ver a indústria dirigir ataques a cientistas e especialistas que estão trabalhando para enfrentar as maiores causas de doenças e de desigualdade na área de saúde. Isso não é novo. E foi uma tática comum da maioria das grandes indústrias nos últimos 50 anos.

Pesquisas apoiadas pelas empresas e organizações de fachada revelam que se sentem ameaçadas pelos termos altamente processado e ultraprocessado.

Uma crítica balanceada é uma parte importante do progresso científico: no entanto, quando eu vejo tentativas de desacreditar a classificação NOVA por atores financiados pelo setor privado, só posso concluir que esses esforços são característicos de um escapismo intelectual.

Os membros invisíveis da biodiversidade global – trilhões de micróbios – estão alertando para as políticas e práticas dos fornecedores de ultraprocessados. Pesquisadores que seguem entrincheirados defendendo os alimentos ultraprocessados estão se vendo do lado errado da história.

O joio e o trigo: De que maneira a ciência e a indústria podem trabalhar em conjunto para criar soluções para a sociedade?

SP: Eventualmente, podem. Mas não da maneira como se faz agora. Os negócios têm de ser parte das soluções. E não apenas em parceria com a ciência, mas em parcerias com as comunidades e a sociedade como um todo. De maneira que não causem ameaças evitáveis na busca incessante por lucros.

Sob um aspecto mais positivo, há agora um envolvimento crescente em responsabilidade social corporativa, usando o poder dos negócios para resolver problemas sociais e ambientais. Há mais de duas mil iniciativas mundialmente que receberam uma certificação por práticas de responsabilidade social.

O joio e o trigo: Suas críticas sobre ultraprocessados causaram alguma reação negativa no setor privado?

SP: Ainda não, mas imagino que vá acontecer. Realmente espero que seja por uma via construtiva. Nossos problemas globais não podem ser resolvidos com mais hostilidade e polarização. A intenção de nossos artigos recentes sobre alimentos ultraprocessados está direcionada a jogar luz sobre a necessidade de mudança. Nós podemos fazer melhor.

Como pediatra, gostaria de lembrar às pessoas que, olhando adiante, com o futuro de nossas crianças em mente, podemos encontrar um terreno comum em face dos interesses complexos e conflitantes. Isso nos recorda que todos dividimos o mesmo destino.

Precisamos da tecnologia para resolver os problemas em nosso mundo, mas, para fazer dela o melhor uso, também devemos seguir nosso coração e nosso sentido humano. (O Joio e o Trigo/Carta Capital/#Envolverde)