Hermes Zaneti, constituinte-88, lançou um livro muito denso e polêmico – O Complô: como o sistema financeiro e seus agentes políticos sequestraram a economia brasileira, no qual ele detalha como foi formada o que é hoje a nossa imensa dívida pública
O pagamento da dívida pública consome quase 50% do orçamento público federal anual. Os desembolsos correspondem aos juros, amortizações e rolagem. Considerando o montante de R$ 962 bilhões pagos em 2015, são nove vezes mais do que todo o orçamento do Ministério de Educação no mesmo ano. No entanto, o aumento da dívida pública não guarda mais relação com o investimento público. Até os anos 60, o aumento da dívida pública tinha clara relação com os grandes investimentos públicos em infraestrutura, programas habitacionais, programas de urbanização entre outros.
Apesar do seu enorme impacto sobre o funcionamento do Estado no provimento de bens e serviços públicos à sociedade e mesmo em áreas relacionadas ao desenvolvimento tecnológico e industrial, o tema da dívida é um tabu. É possivelmente o debate mais interditado na esfera pública da sociedade brasileira. Em todo o espectro político-partidário e em todas as campanhas eleitorais presidenciais, há sempre um grande silêncio sobre o tema. Nas poucas vezes mencionadas, a dívida pública é sempre ‘naturalizada’ como uma lei de ferro da economia. Trata-se de um problema técnico-econômico a ser gerenciado de maneira “prudente e responsável”.
A aceitação da dívida pública como uma espécie de apriorismo lógico reside na premissa maior de que contratos devem ser cumpridos, pacta sunt servanda. Afinal, os contratos são a base do ordenamento social e institucional estável. Romper contratos é sinônimo de instabilidade, de destruição da confiança como mecanismo essencial para o funcionamento dos mercados.
Ronald Coase, Oliver Williamson e Oliver Hart receberam o prêmio Nobel de economia pelas suas teorias sobre o papel dos contratos no desempenho das instituições necessárias ao desenvolvimento econômico e social. Ao se tratar a dívida pública como derivação imediata de teorias contratuais, há pouco ou nenhum espaço para qualquer debate.
Desta forma, por mais nefastos e cruéis que sejam os efeitos da dívida pública sobre a sociedade, por maior que seja o seu fardo para a economia do país, ela é legal e legítima. Argumentos morais de interesse público não sensibilizam os tribunais diante dos direitos de propriedade dos detentores dos títulos da dívida.
Mas e se os contratos firmados são ilegais? E se quem os assinou não tinha prerrogativas para tal? E se a base jurídica e constitucional para tais contratos foi resultado de manobras que ferem as regras do jogo do funcionamento das instituições? Os economistas costumam falar das falhas de mercado (market failures), mas também chamam atenção para as falhas de contrato (contract failures).
Analisando detalhes dos processos, atos e debates que ocorreram durante a Assembleia Constituinte em relação à base legal para a perícia técnica do endividamento externo e interno brasileiro, o livro “O Complô” de Hermes Zaneti traz à tona as fragilidades legais e institucionais dos contratos de endividamento do Governo Federal. O livro é uma espécie de fio de Ariadne que permite ao leitor entender o encadeamento lógico de decisões, fatos e atos dos agentes políticos que agiram claramente na defesa dos interesses do sistema financeiro.
É o primeiro livro que conta os bastidores daqueles que usaram expedientes e manobras fora das regras do jogo democrático para fazer valer os interesses das elites financeiras. Como coloca Zaneti, foram negociações em clara desvantagem para o Governo brasileiro em que foram aceitas condições leoninas, abusivas e ilegais. Aqueles cujo mandato consistia em defender o interesse público e os interesses nacionais agiram de forma contrária aos interesses dos seus representados no contrato.
O grande mérito de “O Complô” é apontar as falhas contratuais graves que ocorreram nos acordos em torno das dívidas externa e interna. No entanto, o exame pericial e analítico dos atos e fatos da dívida pública foi completamente ofuscado pela narrativa do “calote” e da quebra de contratos.
Zaneti lembra que os negociadores cometeram abuso de poder quando transferiram para a responsabilidade da União dívidas privadas e aceitaram cláusulas contratuais de renúncia à imunidade de jurisdição e aplicação do direito brasileiro, de renúncia à alegação de soberania e garantia de execução da dívida e sobre a arbitragem, o que configurava evidente exorbitância de poderes. É possível uma analogia com o que a literatura da governança corporativa chama de custos de agência. Ou seja, quando os agentes (negociadores do lado da União) agiram contra os interesses do principal, a própria União neste caso.
“O Complô” mostra que a Mesa do Congresso Nacional deveria adotar as medidas necessárias junto ao Supremo Tribunal Federal para a decretação da nulidade dos acordos relativos à dívida externa que não observaram o mandamento constitucional do referendo do Legislativo. Em sintonia com a base constitucional legal, a Mesa deveria notificar o Poder Executivo para que promovesse as medidas judiciais cabíveis visando ao ressarcimento dos danos causados ao Brasil pela elevação unilateral das taxas de juros.
Zaneti salienta que a inexistência de ações por parte do Supremo Tribunal Federal, do Poder Executivo e do Ministério Público constituem indícios que a Mesa do Congresso não encaminhou as medidas decididas em plenário.
Se por um lado pacta sunt servanda, a Constituição é superior à lei, lembra Zaneti ao citar o jurista Paulo Brossard. Assim, uma lei complementar diferente da Constituição seria inconstitucional.
Além de consistente em sua argumentação, “O Complô” possui sólidas evidências empíricas que permitem ao leitor entender a gênese das falhas constitucionais, legais e contratuais dos acordos que estabeleceram as condições draconianas da atual dívida pública.
Trata-se de um livro com revelações até hoje inéditas sobre os bastidores da constituinte e extremamente oportuno que, pela primeira vez, questiona a legalidade e legitimidade dos acordos em torno da dívida.
É, também, pela primeira vez que o tema da dívida pública sai da esfera técnica e contábil para ser problematizado no âmbito jurídico com base na Carta Magna do país.
De forma audaciosa, Zaneti propõe uma estratégia jurídica para, como ele mesmo afirma, resgatar a economia e a sociedade brasileiras da tirania do sistema financeiro e de seus agentes estatais. Para isso, ele destaca a importância de resgatar o teor integral do art. 192 da Constituição que estabelece que o sistema financeiro nacional deve promover o desenvolvimento equilibrado do país.
Espera-se que o livro possa romper com o silêncio incômodo daquele que é o principal grilhão da economia brasileira, que a tornou refém do rentismo. Para além das insidiosas consequências econômicas e sociais, a impossibilidade de debater a dívida pública coloca em xeque a democracia do país. Com as brutais limitações impostas pelas atuais condições da dívida, os governos eleitos quase não têm força para implementar os programas escolhidos pela população. Não só a economia, mas a democracia também está sequestrada.
(*) Moises Balestro é Doutor em Ciências Sociais, Professor Associado da Universidade de Brasília (UnB)