por Darlene Menconi*, especial para Envolverde
A ideia de que o paraíso está no Brasil estava na cabeça dos tupi-guarani quando os europeus aqui aportaram. Eles viviam na “terra sem mal”, onde a produção era farta, e se podia viver bem respeitando a natureza. O melhor a fazer era preservar a terra para os descendentes.
Quando os europeus chegaram, traziam a imagem do livro bíblico do Gênesis, de que o paraíso era um jardim exuberante, com um lago e quatro rios, onde havia muita riqueza e pedras preciosas, e se vivia com fartura. As duas coisas se casaram. E assim o Brasil se tornou a imagem perfeita do paraíso.
Cinco séculos depois, a natureza exuberante, a terra onde tudo nasce e cresce é a grande promessa da economia limpa, de carbono neutro. Aquela que usa a natureza como fonte de riqueza. Para o historiador Jorge Caldeira, não há dúvidas de que o paraíso é mesmo aqui. Em uma tarde de chuva forte, no “caaguaçu”, como os índios chamavam a “mata grande”, numa nesga de natureza preservada em plena Avenida Paulista, o Parque Trianon, Caldeira falou sobre seu mais recente livro, “Brasil: Paraíso Restaurável”.
Em parceria com a economista Julia Sekuda, de 27 anos, e a jornalista Luana Schabib, de 34, ele reuniu números, fatos e evidências sobre a economia limpa, que já contaminou as principais economias do mundo. Aos 64 anos, e avô de primeira viagem, Caldeira conta como a revolução da nova economia começa pela ação do cidadão comum, e não de governos. Ele mostra como o Brasil pode se tornar uma grande potência da nova economia.
Que história é essa de que dinheiro dá em árvore?
Durante dois séculos, a ideia de produção econômica era queimar petróleo e carvão como combustível para produzir objetos que não existem na natureza. Com o aquecimento global, mais a tecnologia disponível, surgiram novos modos de produzir. A energia solar e a eólica começam a substituir em velocidade crescente o petróleo e o carvão. E a ideia de que o homem produz usando a natureza, e não destruindo, é cada vez mais plausível e produtiva economicamente. Há 30 anos, a natureza não valia nada e a árvore queimada valia alguma coisa. Agora é o contrário. Dinheiro dá em árvore, essa é a mudança central da economia do mundo.
Como funciona essa nova economia?
Um dos mecanismos criados foi taxar a emissão de carbono. Se eu queimo carbono e lanço gás de efeito estufa, tenho que pagar imposto para quem retira carbono, para quem tem árvore crescendo. Em 2019, foram emitidos 280 bilhões de dólares em títulos de quem queimou para quem preservou. Quase três vezes a exportação do nosso agronegócio. O Brasil poderia pegar até 40% disso. É uma boa notícia para nós, mas o brasileiro não acredita nela.
Por que o Brasil não acredita?
É preciso entender a natureza não como um depósito, mas como a fonte da riqueza. É uma mudança radical. As novas medidas econômicas de produção a partir da natureza vieram mostrar que o Brasil é o lugar do planeta onde se produz mais vida. É uma questão de troca de mentalidade. Dá trabalho, mas vale a pena fazer esse esforço porque o Brasil vai ser o líder mundial da nova economia.
Como convencer nossas lideranças disso?
Uma das fontes de financiamento do mercado de energia são os títulos ESG (da sigla em inglês para Governança, Meio Ambiente e Sociedade ou ASG). Esses fundos com retorno ambiental vêm crescendo, e são como os fundos de renda fixa ou de ações. Hoje praticamente todo capital de longo prazo está em cláusulas ESG. São 45 trilhões de dólares, 28 vezes o PIB do Brasil, ou 500 vezes mais do que a exportação do agronegócio. O Brasil não capta nada. O governo nem sabe do que estamos falando. As grandes economias do mundo, China, União Europeia, Japão e Estados Unidos não só apoiam a mudança, como os governos se comprometeram com data, e em só financiar quem acelera a transição para a economia limpa. O Brasil estará fora do jogo.
O Estado é o grande mal do meio ambiente?
Os governos federal, estadual e municipal estão preparados para resolver problemas de desenvolvimento da década de 1950. Nos últimos 12 anos, o Brasil fez uma Itaipu de energia eólica. Tudo feito por empresas, não houve plano de governo, nem incentivo. Os mercados estão à frente dos governos em todo o mundo. A energia solar vai comer por baixo. Tem tribo de índio com placa de energia solar em cima de árvore. O futuro é investir em descentralização energética.
Existe algo que o indivíduo possa fazer?
A revolução da energia sempre começa de baixo e será inteiramente feita por indivíduos. No momento em que se descentraliza a geração de energia, desaparece a necessidade tanto do planejamento central, quanto de regulação. Essa mudança deve acontecer aqui, como acontece no mundo inteiro. É o cidadão que vai fazer essa mudança, controlando sua geração de energia, e também sua reciclagem.
Como ficam as nações lideradas por negacionistas?
Donald Trump saiu da presidência como o maior instalador de energia solar. Ele não fez nada, tudo aconteceu debaixo dele porque 24 estados e as cidades americanas permaneceram no acordo do clima de Paris. Projetos de energia alternativa, como solar, etanol e eólica foram acontecendo, tanto faz com ou sem governo. No Brasil, 10% da energia já são de eólica. É a segunda maior fonte de geração de energia elétrica, mais do que gás ou bagaço de cana. Temos a matriz energética mais limpa do planeta.
Por que não valorizamos a natureza?
Porque a natureza não valia nada, agora vale tudo. O mundo inteiro está aprendendo a dar valor à natureza, nós estamos na rabeira. Pior, a maior parte das pessoas acha que o meio ambiente atrapalha o desenvolvimento. Mas é o desenvolvimento que se fazia cinquenta anos atrás. Que ninguém mais está fazendo. Não tem mais projetos de grandes hidrelétricas no mundo. Essa natureza exuberante e preservada precisa ser olhada como um tesouro.
Por que você compara o momento atual à escravidão?
Tem mudanças que são mais do mesmo. Sair do telégrafo e ir para o rádio, por exemplo, é a modernização de um meio de transmissão. Para sair da escravidão, foi preciso desmontar todo o sistema legal de garantia da propriedade do escravo, de garantia de direitos, de certo e errado. No século 18, escravidão era considerada inclusive moral. A transição para a economia de carbono neutro é difícil porque é preciso mudar os valores. Antes era bom derrubar floresta para plantar capim, porque capim tinha gado. Agora é mais valioso preservar a floresta. Não é uma mudança trivial. O Brasil tem uma tremenda sorte. Somos o local mais adaptado do planeta para essa nova economia.
O que aprendemos com a covid?
Houve gigantesca aceleração da transição para a economia limpa. O novo coronavírus é o primeiro desastre ambiental que causa uma recessão mundial. O homem invadiu algum ambiente natural que não frequentava. Nesse ambiente tinha um bicho que não frequentava o homem. O curto circuito dessa troca foi imediato e destruiu a economia. Então a relação entre meio ambiente e economia já mudou. A última vez que isso aconteceu foi com a peste negra, no século 14. Nos últimos meses, caiu o consumo de petróleo e carvão e a energia eólica continuou crescendo. Talvez seja a primeira vez que carvão não é a principal fonte de energia do planeta. A energia renovável está chegando.
Como os outros países reagiram?
A União Europeia atrelou todo o plano para sair da recessão a investimento em carbono neutro. Fizeram isso em maio de 2020, a China em setembro, o Japão em outubro. E nos Estados Unidos, Biden ganhou a eleição em novembro. Um ano depois do começo do coronavírus, as principais economias estão diretamente envolvidas em carbono neutro e na aceleração da transição econômica.
E como nos posicionamos nesse cenário?
O Brasil ficou parado. Nosso maior problema com carbono é derrubar floresta, não é consumo de energia. A transformação acelerou muito e o Brasil andou na contramão. Vínhamos bem, a legislação estava andando, o código florestal foi aprovado, as metas relacionadas ao acordo climático de Paris eram exequíveis. O Brasil estava institucionalmente arrumado para entrar nesse mundo.
E agora, onde está o Brasil?
Em dois anos, voltamos dez anos ou mais. O choque vai ser muito maior, é óbvio. Não é questão de alarmismo, é dado econômico. Se a economia de carbono neutro cresce estupidamente, com os governos acelerando nessa direção e o país fica parado, então ele vai ficar para trás. Infelizmente não é uma previsão, é uma constatação. Cada um precisa cuidar da própria energia. Qualquer dono de sítio, qualquer favela pode resolver seu problema de energia e até de saneamento sem o governo. Mudou a escala da decisão. O que os cidadãos podem fazer é quase tudo o que o Brasil precisa. O Estado, que já é semi-inútil, vai ficar muito mais inútil. Vivemos em outro planeta, outra escala, outra economia.
Ficaremos de fora das oportunidades da economia limpa?
A sociedade brasileira é muito apta a lidar com adaptações culturais. Mesmo que demore, temos uma realidade melhor e uma cultura tradicional. O paraíso está aqui. O melhor sol da Alemanha é 40 vezes menos intenso do que o pior sol brasileiro. Além de uma matriz limpa, o Brasil é um espaço talhado para implantar essa mudança. O que falta é a elite pensar nisso.
Qual é o papel da elite?
A elite brasileira é o atraso nesse momento. Deveria perceber que isso é negócio, que vamos nos dar bem. A ideia de progresso de 1950, 1960, era a de derrubar a mata e colocar gado. Isso não é mais progresso. A China vai precisar destruir toda a energia de carvão e fazer outra, para sobreviver. O Brasil não precisa de uma obra desse tamanho. Pelo contrário, a obra aqui é mínima e o desfrute é máximo. Em 2030, metade dos carros na Europa serão elétricos. O problema no Brasil não é falta de dinheiro, nem de tecnologia. É falta de conhecimento do que é essa nova economia. Falta de valor.
O que é o novo normal?
A vida não vai mais voltar a ser o que era. Sem grande esforço, o Brasil pode chegar a carbono neutro em 2025, 2028. A Europa vai chegar em 2050, a China em 2060. O Brasil pode ficar 30 anos na frente do resto do mundo em dez. Por isso os estrangeiros colocam dinheiro aqui, porque fizeram as contas. Tem fila de gente fazendo oferta de dinheiro ESG. E as empresas se adaptam para os negócios com créditos de carbono. Desprezar dinheiro é uma coisa que tem tempo limitado para durar.
*Darlene Menconi – Jornalista com experiência na cobertura de ciência, tecnologia e sustentabilidade para os principais jornais e revistas do país. Formada em Jornalismo pela Cásper Líbero, estudou Filosofia na USP e fez especialização em Gestão Ambiental na Fundação Getúlio Vargas-RJ. Apresentadora de webTV, atuou em diversos projetos de comunicação corporativa e institucional com a elaboração de perfis executivos, edição de livros, desde 2007 atua como produtora independente de conteúdo multiplataforma.
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