Economia

Pesquisador da UFPA diz que é preciso “resgatar as economias da Amazônia e seus protagonistas”

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Manaus (AM) – O pesquisador Francisco de Assis Costa acaba de lançar extensa obra sobre a história econômica da região amazônica. O economista, ele é pesquisador do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade do Pará (NAEA-UFPA) e professor do programa de pós-graduação em Economia da mesma universidade. Tem doutorado pela Universidade Livre de Berlim (1989) e já foi professor visitante da Universidade de Oxford. Nascido no interior do Rio Grande do Norte, ele vive na Amazônia há décadas.

Suas pesquisas estão focadas na história econômica da Amazônia, economias agrárias contemporâneas, relações entre economia e meio ambiente, destacando a importância de inovações tecnológicas na Amazônia. Autor de 15 livros, seu mais novo título, “A Brief Economic History of the Amazon” (“Uma breve história econômica da Amazônia”, em tradução livre), lançado, mundialmente, no dia 1º de fevereiro pela Cambridge Scholars Publishing.

Dividido em três grandes capítulos, o livro aborda 250 anos de economia amazônica. O primeiro capítulo é sobre a economia colonial amazônica (1720-1822), na qual se destacam elementos como o papel de ordens religiosas e a formação do “campesinato caboclo”. A seguir, o autor aborda a economia da borracha (1850-1920); e, por fim, uma análise das dinâmicas urbanas e rurais na era pós-borracha, até 1970.

Ainda sem versão completa em português, o livro está disponível para compra online, desde o dia 1º fevereiro, com lançamento físico previsto para março, na UFPA. Confira entrevista exclusiva que Francisco de Assis Costa concedeu, por e-mail, à agência Amazônia Real:

Amazônia Real – Uma primeira coisa que chama a atenção no livro é a extensão do período abordado: são 250 anos de história econômica.

Francisco de Assis Costa – É verdade. Trata-se de um longo trajeto que abordamos em três capítulos. Cada capítulo trata de períodos fundamentais da história econômica da Amazônia. O primeiro refere-se à economia da Amazônia colonial, focando no século 18. Em seguida, mergulhamos na economia da borracha, na sua rápida expansão ao longo do século 19 e auge no início do século 20. O terceiro capítulo cobre o período mais extenso, em uma perspectiva que observa a economia regional por inteiro: analisa, assim, o crescimento e a crise da economia regional, sob a influência da borracha, desde 1850 até os anos vinte do século seguinte, bem como a reestruturação das décadas seguintes posteriores à crise dos preços da borracha, chegando a 1970.

Amazônia Real – Quais particularidades o senhor destacaria de cada período abordado no livro?

Francisco de Assis Costa – A nossa leitura da economia colonial inicia com os arranjos institucionais do último quartel do século 17 que permitiram uma distribuição equilibrada da força de trabalho indígena, pelos diferentes atores da colônia e se estende até o fim da colônia, em 1822. É um extenso e acidentado percurso, no qual fatos históricos e processos decisivos ocorreram para a constituição da Amazônia ocidentalizada que vai se formando ao longo dos séculos, chegando aos nossos dias. A destacar, seria a organização de uma economia voltada para a produção de produtos da floresta, destinados ao florescente mercado mundial de especiarias. Essa economia das “drogas do sertão” tem características muito próprias, comparativamente a outras experiências coloniais.

Prof. Dr. Francisco de Assis Costa, em sua biblioteca particular em Belém (Foto: Paulo Santos/AcervoH/Amazônia Real)

A primeira e mais fundamental especificidade é que ela era totalmente dependente do conhecimento indígena. Isso limitou a aplicação, aqui, do modelo de economia colonial já testado pelos portugueses em outras partes do mundo, em que as atividades fins (agrícolas) eram dependentes de conhecimentos europeus e força de trabalho africana. Isso teve uma série de consequências. Uma delas é o papel de liderança no arranjo produtivo exercido pelas ordens religiosas, principalmente pelos jesuítas, porque elas conseguiram controlar as populações indígenas. Outra particularidade é que a agricultura, por ser fornecedora de insumos para a produção extrativista, tornou-se a esta subordinada. Isso é uma inversão importante em relação às crenças estabelecidas. Basta lembrar que, na ideologia do empreendimento colonial, a agricultura é estágio civilizatório necessariamente superior ao extrativismo. Pois bem, as consequências dessa realidade invertida vão bem além da economia, produzindo crises institucionais e de mentalidade. As famosas reformas pombalinas que acontecem em meados do século 18 – cujo evento mais dramático e comentado na historiografia do período é a expulsão dos jesuítas –, são respostas a crises desse tipo, atreladas, é claro, às instabilidades econômicas que as instalam. No período de pouco mais de duas décadas, marcado pela administração pombalina, criam-se na Amazônia estruturas produtivas novas, sendo de destacar uma forma de campesinato (produção de base familiar) caboclo que vai se tornar muito importante no último período de vigência da economia colonial. É difícil entender a economia da borracha que se instala, em meados do século 19, sem a consideração desse campesinato porque, como mostramos no livro, ele baseia sozinho a economia da borracha por quase meio século. Só depois de 1880 o grande seringal decantado na literatura romanesca e historiográfica se estabelece e ganha importância. Entendo que o grande destaque desta parte do livro é a visão que se oferece da economia da borracha, baseada na atuação de dois arranjos produtivos diferentes – um baseado em estruturas camponeses caboclas flexíveis e resilientes, integradas ao mercado por regatões; e outro baseado no grande seringal, seu barracão imóvel e seus seringueiros imobilizados. O terceiro capítulo do livro destaca-se por ser um esforço de tratar a evolução da economia amazônica, desde 1850 até 1970 em sua totalidade, isto é, englobando todas as atividades de exportação (da borracha e dos demais exportados) e a produção para mercado interno (agrícola e industrial). Isso permitiu uma leitura das relações entre base de exportação e produção doméstica, por um lado e, por outro, uma avaliação das relações entre os setores rurais e urbanos. Permitiu, também, uma leitura bastante completa do processo de reestruturação econômica que se processa na região até 1970.

Amazônia Real – A introdução de seu novo livro apresenta a ideia de que os ciclos econômicos, baseados em um produto único, são característicos da historiografia econômica brasileira. Isso significa que os historiadores econômicos têm organizado a narrativa da história do país muito baseados nesse recurso. Esse modelo continua sendo representativo ainda hoje?

Francisco de Assis Costa – Na introdução fazemos uma referência crítica à historiografia econômica brasileira baseada em ciclos. Nesse tipo de abordagem, para cada período prevalece, explicando tudo, um “produto-rei”. É assim que se popularizou, por muito tempo, uma história do Brasil que se comporia de um “ciclo do pau-brasil”, sucedido por um “ciclo do açúcar”, em seguida o “ciclo do ouro”, etc. Essa visão teórica e metodológica da história influenciou, também, a história econômica da Amazônia, com uma produção relevante que realça um “ciclo das drogas do sertão” ou, principalmente, o “ciclo da borracha”. Desde os anos setenta, há uma crítica enfática a essa noção e uma produção historiográfica para o Brasil como todo tem se feito, de modo a superá-la.

A minha orientadora no mestrado, a grande historiadora Maria Yedda Linhares, teve papel destacado nesse esforço, argumentando que esse tipo leitura histórica obscurece os aspectos da realidade que não estão relacionados, diretamente, com os produtos ou atividades centrais, [que são] sempre aquelas voltadas para o mercado externo. Assim, some da análise, quase sempre, os produtos e atividades ligadas ao abastecimento interno, que são muito importantes para entender, realmente, o que se passou. Ficando de fora essa produção, some, também, as pessoas e estruturas por ela responsável. Esse é o caso muito frequente de camponeses, como já indicava Ciro Flamarion Cardoso para certas situações de diversos matizes que existiram, de modo significativo no Brasil colonial, produzindo arroz, feijão, milho, mandioca e vários outros produtos que alimentavam a colônia. Eles são esquecidos… É como se não tivessem existido. Isso tem consequências práticas e atuais: como se nega a sua existência passada, eles também não são vistos hoje. No caso da Amazônia, esses vieses metodológicos têm sido igualmente nocivos, obscurecendo atores, estruturas e eventos fundamentais. É a isso que se refere a nossa crítica.

Amazônia Real – O que é o “campesinato caboclo”?

Francisco de Assis Costa – “Campesinato” é o coletivo de “camponês”, ou de “famílias camponesas”. Alexander von Chayanov –um economista russo do início do século 20 que propôs uma teoria muito interessante da economia camponesa – falava de “empresa camponesa” para se referir a uma família nucleada (pai, mãe, filhos…) camponesa. Na sua ótica, toda família camponesa é, ao mesmo tempo, uma empresa. Isto quer dizer: na primeira condição, ela é unidade de consumo; na segunda, unidade de produção. Uma empresa camponesa tem a peculiaridade de só empregar a si mesma e de dividir, pelos seus membros, todo o lucro que obtém. No início da colonização, não havia camponeses na Amazônia. Existiam as tribos que congregavam famílias extensas e as fazendas, baseadas em trabalho escravo. Os religiosos aldearam, em suas missões, os indígenas e estimularam a formação de famílias nucleadas – o ideal cristão de família. Depois, no período pombalino, estimularam, também, a formação de famílias nucleadas de portugueses e índios. Quando essas famílias se tornaram autônomas, saíram dos aldeamentos e missões, e passaram a funcionar como famílias camponesas, no sentido de Chayanov. O interessante, aqui, é que essas famílias fundiram conhecimentos e necessidades indígenas e europeias e, assim, passaram a ser camponeses bem especiais, constituindo um “campesinato caboclo” amazônico.

Amazônia Real – Na introdução do livro, o senhor menciona que a história da Amazônia foi mais marcada pela invariância no domínio do extrativismo da região e na sua relação com a economia global. Pode explicar melhor?

Francisco de Assis Costa – Já mencionamos que aquela forma de abordagem da história econômica por ciclo foi aplicada, também, para a história da Amazônia. Com base nela, criou-se essa periodização, bem conhecida de todos, que fala da história da região, como a sequência de um “ciclo das drogas do sertão”. Este ciclo teria dado lugar, a partir dos esforços da gestão pombalina, a um “ciclo agrícola”, o qual viria a ser substituído pelo “ciclo da borracha”, um novo ciclo extrativo. O que demonstramos no livro é que o período pombalino dependeu tanto do extrativismo quanto a fase anterior, e que surtos exportadores agrícolas, antes da fase dominada pelo extrativismo da borracha, foram eventuais e curtos. Desse modo a dependência do extrativismo nas relações externas deveria ser entendida como um traço invariante da história econômica da região, até bem fundo no século 20.

Amazônia Real – Qual regime econômico influenciou a economia na Amazônia no passado e no presente?

Francisco de Assis Costa – Encontramos, hoje, na Amazônia economias importantes, baseadas em múltiplas formas atualizadas daqueles camponeses caboclos, cujo surgimento e desenvolvimento histórico procuramos esclarecer no livro. Essa presença é absolutamente fundamental, numa perspectiva estratégica que procura encontrar, na história, respostas para os “problemas de hoje, não de ontem, ou de anteontem”. É como diria Fernan Braudel, porque esses camponeses são portadores de capacidades de lidar de modos virtuosos com o ecossistemas amazônicos. Este acervo de conhecimento esteve na gênese e se mantêm fundamental no desenvolvimento de economias hoje importantes, como a do açaí, dos óleos essenciais, dos fitoterápicos, dos fármacos, e por ai vai.

Amazônia Real – É possível, nos dias de hoje, enxergar o desenvolvimento amazônico sob a mesma lógica de outras economias ocidentais e seus modelos de se relacionar com a natureza?

Francisco de Assis Costa – A lógica que prevalece no mundo, hoje, é a do industrialismo capitalista. Essa racionalidade busca o máximo controle dos elementos da natureza que entram nos processos produtivos, os quais são regidos, em última instância, por critérios do capital financeiro, que procura se expandir sem limites, como se limites não houvesse. Tanto na indústria, como na agricultura. Na verdade, indústria e agricultura se reforçam mutuamente: os recursos naturais que entram na indústria são exigidos em escalas cada vez maiores e de formas cada vez mais homogêneas, forçando a agricultura; esta, para atender ao ritmo sempre frenético da indústria, se torna cada vez mais intensiva, mecânica e homogênea – isto é, cada vez mais industrial. O bioma amazônico, certamente o mais importante ativo (riqueza) da região – se observado em perspectiva holística e de longo prazo (que inclua água, terra e ar) –, tem propriedades inversas àquelas valorizadas pela racionalidade industrial: é extraordinariamente heterogêneo e rígido, no que se refere à escala de obtenção dos seus elementos. A imensa heterogeneidade natural da região e os atributos que levaram a isso (altíssimas luminosidade e umidade) bate de frente com os requisitos de eficiência da agricultura – plantio homogêneo e extenso na região tem vida curta. Não é difícil perceber que aqui temos uma contradição: a lógica dominante (nega o extrativismo e) força a agricultura homogênea e de grande escala, que invariavelmente dura pouco. Pode-se até ganhar dinheiro com isso, mas por pouco tempo e quase sempre menos do que esforços semelhantes em outros lugares. A recorrência do processo findará por exterminar o que está no seu caminho: o bioma e tudo que significa, em termos humanos e culturais, atuais e potenciais. Na verdade, para um uso longo das possibilidades da região, teria que se aprender a utilizar, de modo inteligente (sustentável?), os recursos contidos no bioma originário. No passado, na economia colonial que analisamos no livro sobre o qual estamos conversando, isso foi feito. Hoje, também teríamos uma chance, recorrendo a formas requalificadas de industrialização, que incorporem valores locacionais (naturais, como o terrois do vinho) e culturais. Isso seria possível no sistema em vigência? Acho que sim. Na verdade, temos que acreditar que sim, [e] trabalhar para que um sim seja a resposta… “Mesmo que o momento inspire mais pessimismo que otimismo.”

Amazônia Real – É possível apontar um grande erro na história econômica da Amazônia?

Francisco de Assis Costa – Apontar erros da história é uma coisa complicada… Nessa história mesmo, com a qual lidamos no livro, é comum julgamentos desse tipo, em relação aos protagonistas da economia da borracha, em posição de elite, como os grandes comerciantes de Belém e Manaus e os governos locais. É comum se dizer que eles erraram em não plantar seringueira, ou em não fomentar o desenvolvimento industrial… Tentamos tratar essas questões no livro, procurando situar as razões desses agentes no contexto macro da economia em questão, de suas características e condicionantes. Apresentamos resultados bem interessantes.

Conseguimos observar, por exemplo, que dos trinta anos que durou a economia do grande seringal, apenas numa terça parte se observa um regime de acumulação consistente. As exigências da expansão, arrastada por preços no mercado mundial – cada vez mais elevados e expectativas correspondentes de ganhos –, mantiveram esses agentes presos à borracha extrativa que, obtida a custos crescentes, levou o sistema a funcionar com alto nível de endividamento, na maior parte do tempo. Nos dez anos em que os ganhos líquidos se tornaram recorrentes, houve, sim, investimentos industriais importantes e um consequente e notável crescimento do setor, que prosseguiu mesmo após a grande crise de preços da borracha.

Amazônia Real- Em recente artigo para a Amazônia Real, Lúcio Flávio Pinto fala sobre como a ideia de que a Amazônia é um vazio a ser preenchido foi nociva para a região, no aspecto ambiental. O senhor considera que tal pensamento também foi nocivo no âmbito econômico?

Francisco de Assis Costa – Certamente. A tese do vazio demográfico é a tese da inexistência de economias relevantes em funcionamento na região, antes dessa abordagem econômica, organizada pela ditadura militar, temerária ambientalmente, socialmente excludente, baseada na grande pecuária extensiva, na agricultura de grãos e na plantation homogênea. Em síntese, ela nega historicamente as economias preexistentes a esse modelo, precisamente aquelas capazes de lidar com as especificidades dos ecossistemas regionais, com base num legado de conhecimento ancestral, incorporado nos repertórios culturais das sociedades locais. Resgatar, historicamente, essas economias e seus protagonistas é uma das justificativas mais proeminentes para o livro que aqui comentamos.

Amazônia Real – Como o senhor enxerga a política do governo Bolsonaro para a Amazônia?

Francisco de Assis Costa – Até onde é possível enxergar, ela levará negação das possibilidades endógenas da região que nos referimos acima, a níveis muito elevados, apostando todas as suas fichas na perspectiva contrária, de uso da região com base em meios e critérios estranhos às suas peculiaridades e necessidades.

Amazônia Real – Em uma entrevista de 2007, o senhor falou sobre o conceito de “esperança de sustentabilidade” quando trata-se de avaliar um projeto de desenvolvimento. No contexto atual, é possível ter tal esperança na Amazônia?

Francisco de Assis Costa – Tenho utilizado essa noção para indicar que a categoria de sustentabilidade não pode ser acionada para expressar um valor absoluto. Na medida em que a relação entre os sistemas sociais e naturais resulta em sistemas altamente complexos, mesmo as ações melhor intencionadas podem resultar em processos inversos ao desejado. Portanto, quando agimos, só podemos ter “esperança” de que nossa ação seja inócua ou construtiva.

Atualmente na Amazônia há formas de produção e economias que se reproduzem com maior esperança de sustentabilidade que outras; há formas de produzir, por outro lado, em que a esperança de sustentabilidade é nula. Desse modo, a esperança de sustentabilidade do processo de desenvolvimento do conjunto cresce, se as primeiras forem privilegiadas, pela política, em relação às últimos. Não sei que medida é possível cogitar de possibilidade no atual contexto.

(#Envolverde)