Levantamento da Pública revela que mais de dois terços dos imóveis rurais declarados no Cadastro Ambiental Rural do Pará apresentam alguma sobreposição e pelo menos 20 registros definitivos validados em terras indígenas, o que é proibido.
Por Ciro Barros, Iuri Barcelos, João Otávio Gallo, da Agência Pública –
Exaltado como uma das principais ferramentas para que o Brasil cumpra suas metas do Acordo de Paris sobre o clima, firmado no último mês de abril, o Cadastro Ambiental Rural (CAR) nasceu há quatro anos como instrumento de regularização ambiental. Ele é uma estratégia do Estado brasileiro para controle, monitoramento e combate ao desmatamento das florestas nacionais, bem como para o planejamento ambiental e econômico dos imóveis rurais.
A Pública se debruçou sobre os cadastros do estado do Pará para investigar uma percepção ainda incipiente de especialistas que estudam o CAR: o novo cadastro esbarra em questões como fiscalização e controle ineficientes e em problemas relacionados à titularidade das terras.
Para a obtenção das conclusões expostas a seguir, analisou-se uma amostra de 95% da área de registros do CAR no Pará colhidos até junho deste ano, o que corresponde a uma área de 52 milhões de hectares. Somados, esses imóveis têm de recompor quase 600 mil hectares de reserva legal; área de cobertura vegetal que, por lei, deve ser preservada nos imóveis rurais.
150 mil registros; 108 mil cadastros sobrepostos
Dos mais de 150 mil registros do CAR paraense analisados pela Pública, ao menos 108 mil apresentam alguma sobreposição com outros imóveis rurais; no total, a reportagem identificou quase 240 mil áreas de sobreposição, que somam mais de 14 milhões de hectares. A pesquisa revela também que em 48 mil cadastros as sobreposições preenchem mais de 100% do imóvel rural, o que significa que diversos registros incidem sobre o mesmo imóvel.
Além desses milhares de cadastros, ao menos 1.540 registros incidem diretamente sobre terras indígenas e outros 291 sobre Unidades de Conservação de Proteção Integral, áreas protegidas pertencentes à União. De acordo com as informações disponibilizadas, todos os cadastros estão ativos, embora 80% deles constem como “Aguardando análise”.
Mais grave, o levantamento encontrou 20 cadastros analisados e aprovados pela Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas) do Pará com incidência sobre terras indígenas, o que é proibido.
Da análise dos dados surgiram casos que evidenciam o problema fundiário do Pará. A fazenda Paragominas é um exemplo. Esse imóvel rural possui uma área de cerca de 4 mil hectares com 100% de sua área sobreposta à Terra Indígena Apyterewa, homologada pela Presidência da República em abril de 2007.
O cadastro desse imóvel foi analisado pela Semas em novembro de 2008, ou seja, mais de um ano e meio após a homologação da terra indígena, e mesmo assim houve validação sobre a área, o que configura uma ilegalidade. Pela Constituição, as terras indígenas são de usufruto exclusivo dos índios que as ocupam – nesse caso, os da etnia Parakanã. Desde 2011 a Funai mantém uma operação para retirar os ocupantes não indígenas da Apyterewa. Em junho, a Força Nacional de Segurança Pública foi deslocada para apoiar a Polícia Federal, a Polícia Rodoviária e a Funai nessa desintrusão.
Em entrevista à Pública, o diretor de Geotecnologias da Semas, Vicente de Paula, confirmou que não pode haver cadastros ativos sobre terras indígenas. “Não pode. Se o cadastro está incidindo, a gente nem aprova. Se ele está a 10 quilômetros da terra indígena, que a gente chama de área de influência, a gente cumpre a resolução 378 do Conama [Conselho Nacional do Meio Ambiente] e avisa a Funai para que tenha a anuência”, esclarece. Diante da situação relevada pela reportagem, a Semas afirmou que “esses cadastros serão filtrados no módulo análise quando instalado. A previsão para a instalação é de 40 dias”. O módulo de análise, explicado em detalhes adiante, é um software lançado em maio do ano passado que pretende automatizar a verificação da consistência dos dados do CAR declarados pelos proprietários ou posseiros rurais. O proprietário da fazenda Paragominas não foi localizado pela reportagem.
Em outro caso, a empresa Rondobel Indústria e Comércio de Madeiras apresenta três cadastros ativos sobrepostos à Terra Indígena Maró, localizada no município de Santarém. Ao todo, os cadastros da madeireira incidem sobre 2.600 hectares do território habitado pelos índios Arapiaun e Borari. Identificada em outubro de 2011, a terra Maró tem CARs que permanecem ativos. A empresa possui dezenas de Planos de Manejo Florestal Sustentável (PMFS) na área e, desde 2007, recebeu a autorização do governo do Pará para explorar o equivalente a 252 mil metros cúbicos de volume de madeira nesses planos. Procurada, a Rondobel não negou a exploração madeireira em terra indígena. Em nota, afirmou que “respeita (e respeitará) toda e qualquer decisão judicial e do Poder Público” e que não há “qualquer divergência ou conflito entre a empresa e a comunidade indígena”. A empresa afirma que “houve apenas a delimitação da pretensa TI pena Funai”.
Há uma contradição entre o que diz a Rondobel e o que afirmou à Pública Vicente de Paula, da Semas. Segundo ele, a partir do momento em que se delimita um território indígena, “os limites são respeitados” pelo órgão ambiental, o que significa que não podem existir CARs ativos.
A Pública enviou uma série de questionamentos a SEMAS, veja as perguntas e respostas na íntegra.
Estados são os responsáveis pela regulamentação
Pela legislação, os estados são os responsáveis pela regulamentação e pelo gerenciamento dos dados. Criou-se também o Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural (SiCAR) para a integração das informações pelo Serviço Florestal Brasileiro (SFB), órgão federal ligado ao Ministério do Meio Ambiente responsável pelo gerenciamento do CAR no país. “A gente tem uma margem de mais de 350 milhões de hectares registrados no cadastro”, diz Carlos Eduardo Sturm, diretor do SFB. O diretor explica que o SFB vem atuando agora com o processo de regularização ambiental e integrando as bases de dados do sistema. Segundo o último boletim do órgão, pelo menos 3,61 milhões de propriedades ou posses rurais já haviam sido cadastradas no SiCAR, totalizando uma área de mais de 377 milhões de hectares, 94,7% da área passível de cadastro. Em relação aos problemas apontados pela reportagem, a SFB não respondeu até a publicação.
As inconsistências encontradas na apuração e análise dos dados do CAR paraense contrastam com o entusiasmo dos últimos governos com o instrumento de regularização ambiental. O atual ministro da Agricultura, Pecuária e Abastecimento do governo interino de Michel Temer, Blairo Maggi (PP-MT), não poupou elogios ao CAR quando senador. “Além dos seus fins estatísticos, irá ajudar esses proprietários no planejamento ambiental e produtivo de suas terras. Esse é um Brasil criando condições para o desenvolvimento agrícola responsável pautado pela preservação ambiental”, discursou no plenário em março deste ano. “O Brasil quer acabar com o desmatamento ilegal, controlar as autorizações de supressão de vegetação com base na lei. Para isso vou ter que fazer Cadastro Ambiental Rural. Pela primeira vez, você tem o setor produtivo a bordo fazendo uma coisa da área ambiental”, afirmou à BBC Brasil a ex-ministra do Meio Ambiente Izabella Teixeira.
O CAR nasceu do Código Florestal
O Código Florestal, aprovado em 2012 sob críticas de ambientalistas e movimentos ligados à pauta socioambiental e alvo de quatro Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) no Supremo Tribunal Federal, tornou obrigatória a realização do CAR para todas as propriedades e posses rurais do Brasil, inclusive as coletivas, como áreas de populações tradicionais (quilombolas e ribeirinhos, por exemplo) e assentamentos da reforma agrária.
O CAR é autodeclaratório, ou seja, os próprios proprietários ou posseiros (no caso de imóveis particulares) registram em uma plataforma virtual todos os dados ambientais de seus imóveis: desde as Áreas de Preservação Permanente (APP) até áreas de Reserva Legal, florestas ou áreas remanescentes de vegetação nativa. Esse cadastro permite ao governo fiscalizar o desmatamento nos imóveis e visualizar o nível de adequação ambiental, por exemplo, se o imóvel mantém o percentual legal de APPs ou Reserva Legal. Cabe aos governos estaduais, após os proprietários cadastrarem os dados, verificá-los.
“A implementação do Código e toda a segurança jurídica, como a garantia de que os mecanismos de compensação e regularização funcionem, estão vinculadas ao CAR. Ele é o eixo por onde todo o Código Florestal gira em volta”, afirma Gerd Spavorek, professor da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq-USP).
Ao fazer um balanço do cadastro no ano passado, a ex-ministra do Meio Ambiente Izabella Teixeira afirmou: “Nunca tivemos a quantidade de informação que temos hoje sobre vegetação nativa em propriedades rurais no país. O antigo Código Florestal sequer conseguiu registrar 1% daquilo que é a demanda que o [novo] Código Florestal determina, que é mapear, por intermédio do CAR, todos os remanescentes de vegetação nativa e a regularização ambiental dos proprietários”. Apesar desse potencial e do novo patamar de informações registradas pelo CAR, a política esbarra em velhas questões do caos fundiário brasileiro e da disputa pela terra.
“Cartucho de impressora numa máquina de escrever”
“O CAR é um grande instrumento, uma inovação, algo que pode ser muito positivo. Mas, enquanto não tiver uma checagem fundiária, ele pode ser usado por pessoas que querem se dizer donas de determinadas áreas públicas, sobre as quais não poderia existir posse nem propriedade”, avalia Eliane Moreira, promotora licenciada do Ministério Público do Estado do Pará e doutora em desenvolvimento sustentável pela Universidade Federal do Pará (Ufpa).
Autora do artigo “O Cadastro Ambiental Rural: a nova face da grilagem na Amazônia?”, ela afirma que a checagem fundiária do CAR é defasada. “No Pará, o CAR tem duas fases: provisório e o definitivo. O período até a checagem de documentação e verificação de incidência efetiva sobre territórios tradicionais é muito grande. Isso gera distorções. Por exemplo, você tem áreas no município de Portel [a cerca de 260 km de Belém] em que há grande incidência de cadastros em glebas que haviam sido destinadas pelo próprio estado do Pará para comunidades tradicionais”, diz Eliane, que atuou na Região Agrária de Castanhal.
Para ela, há ainda uma questão anterior. De acordo com a lei brasileira, mesmo os documentos cartoriais não bastam para comprovar a posse ou propriedade de terras, já que é necessário checar toda a cadeia dominial do imóvel para chegar até o título de origem que confirma se a posse ou propriedade é legítima. “O CAR é um cartucho de impressora numa máquina de escrever. É um instrumento supermoderno e interessante, mas a gente precisa atualizar a máquina onde ele vai operar”, compara Eliane. “Essa pretensão do CAR de se esquivar da questão fundiária pode levar o instrumento a fracassar. E, para enfrentar a questão fundiária, não basta só o cruzamento com outras bases de dados; é preciso fazer uma varredura em toda a cadeia dominial dos imóveis para ver se os documentos de cartório são legítimos. Sem essa varredura, o CAR vai validar a situação de conflitos de terra no Pará”, afirma.
Caos fundiário
Exemplo da situação caótica em termos de registros de terra no Pará foi a varredura realizada nos cartórios pela Comissão Permanente de Monitoramento, Estudo e Assessoramento das Questões Ligadas à Grilagem. Após análise dos documentos de posse e propriedade registrados nos cartórios do estado, a comissão solicitou o bloqueio de mais de 6 mil áreas registradas até 2007. Somados, os registros contabilizam mais de 480 milhões de hectares, ou seja, uma área equivalente a quase quatro vezes o tamanho do próprio Pará. “Se de um lado o CAR é muito bem-vindo, por dar alguma ideia da localização de um imóvel, de outro ainda há muita insegurança com relação aos dados cartoriais discutíveis; os dados do CAR não batem com os dados do Incra ou da Receita Federal, por exemplo”, avalia o professor de direito da Ufpa Girolamo Treccani, que participou da análise dos documentos nos cartórios paraenses.
É nesse quadro de insegurança que o CAR traz preocupação, sobretudo pelo modo como foi regulamentado não só no Pará, mas nacionalmente. O modelo autodeclaratório impõe ao poder público a necessidade de uma fiscalização eficiente para corrigir as inconsistências, mas, como mostra o levantamento da Pública, existem casos de validação de CARs em áreas públicas. Além disso, para registrar um CAR no Pará, é preciso dar alguma comprovação da posse do imóvel, mas as fontes consultadas pela reportagem afirmam que a Secretaria de Meio Ambiente aceita uma documentação frágil para essa comprovação. Por exemplo, uma cópia de certidão de um órgão fundiário ou declarações de sindicatos, cooperativas e prefeituras é suficiente para comprovar posse. “Qual a legitimidade que uma cooperativa ou sindicato tem para atestar a posse?”, questiona Eliane Moreira. Fato é que já existem grandes quadrilhas que se valem do CAR para grilar terras públicas e explorá-las ilegalmente.
Análise remota basta?
Prorrogado o prazo final de inscrição do CAR para dezembro de 2017, caberá aos governos estaduais, com a coordenação do governo federal, fazer a triagem dos dados autodeclarados pelos proprietários. Para isso, o SFB aposta no “módulo de análise” para separar o joio do trigo, um software lançado em maio do ano passado que pretende automatizar a verificação da consistência dos dados do CAR declarados pelos proprietários ou posseiros rurais.
O sistema integra outros bancos de dados para apontar as inconsistências como sobreposições com áreas públicas e outros imóveis. “Você tem o módulo de cadastramento, em que mais de 4 milhões de CPFs e CNPJs acessaram e fizeram seu cadastro. Depois você tem o módulo que a gente chama de ‘Central do Proprietário Possuidor’”, explica Carlos Eduardo Sturm, diretor do SFB.
Pelo Central do Proprietário, o produtor terá as informações do andamento da análise do processo. “E temos também um módulo de análise propriamente dito, lançado no ano passado, que prevê a automatização de procedimentos e de fluxo digital de aprovação do cadastro”, explica Sturm. No entanto, o decreto de regulamentação do CAR não determina a fiscalização in loco; diz que “o órgão ambiental competente poderá realizar vistorias de campo sempre que julgar necessário”. Apesar disso, o decreto estabelece que, “enquanto não houver manifestação do órgão competente acerca de pendências ou inconsistências nas informações declaradas e nos documentos apresentados para a inscrição no CAR, será considerada efetivada a inscrição do imóvel rural no CAR”.
Para entender o sistema de análise do SFB, é preciso detalhá-lo. Primeiro, o sistema obtém os dados declarados dos imóveis e os localiza a partir de análises de satélite. Sobre a área declarada, se delimita um perímetro para aferir se as informações dos proprietários condizem com a determinação legal. Por exemplo, pela imagem de satélite é possível verificar se uma área de Reserva Legal condiz com o percentual determinado por lei.
Segundo Sturm, o sistema aponta também as sobreposições dos imóveis com áreas públicas. “O cadastro vai ser recebido no banco de dados e, ao ser recebido, entra a geolocalização, que é cruzada com outras bases como unidades de conservação, terras indígenas, assentamentos de reforma agrária, áreas de embargo do Ibama e outros imóveis rurais”, explica o diretor do SFB. Ele garantiu em entrevista à Pública que as secretarias estaduais não validam CARs em áreas públicas, o que não corresponde ao levantamento da Pública.
Segundo o diretor de Geotecnologias da Semas do Pará, Vicente de Paula, o módulo de análise está integrando bases de outros órgãos para o cruzamento de informações. “Esses insumos que colocamos na nossa base é para que já haja um cruzamento automático, porque não teríamos como fazer um a um”, afirma. Segundo ele, a Semas vem firmando convênios com os municípios paraenses para ampliar a fiscalização.
A validação remota não é unânime entre os especialistas. Gerd Spavorek, da Esalq-USP, afirma ser possível fazer uma validação eficiente com meios remotos. “A tecnologia para tratar as incorreções, como as sobreposições, existe. Isso é um desafio técnico plenamente superável. Não existe uma dificuldade ou uma incerteza da viabilidade do CAR em função dessas inconsistências. É um desafio muito menor fazer essa crítica do que ter a adesão ao CAR”, opina. Já Eliane Moreira discorda. “Para saber qual é realmente a incidência da terra, você só assegura a questão fundiária com varredura in loco. Existem casos em que o sujeito apresenta um documento cartorial perfeito e válido, mas ele está ocupando uma área que não é a do documento. Não é incomum acontecer. Já vi casos em que havia um desvio de 60 km entre o documento apresentado e a área ocupada”, argumenta.
Organizando milhares de registros do CAR
Para realizar o levantamento nos dados do CAR do Pará, a reportagem da Pública baixou 143 planilhas (uma para cada município do estado) que continham todos os códigos dos imóveis rurais declarados ao SFB. O órgão federal possui um sistema virtual para visualização das informações dos cadastros. Como a consulta é individual, o programador João Otávio Gallo desenvolveu um software (batizado de CARbot) que fez buscas automáticas no portal do Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural (SiCAR) e extraiu de cada registro todas as informações públicas disponíveis. O programa então compilou os resultados das buscas numa robusta base de dados. Com isso, foram visualizados todos os cadastros dessa etapa autodeclaratória do CAR no sistema federal. Mas era preciso saber quais desses cadastros já haviam passado pela análise e validação do órgão responsável, a Semas. Era necessário juntar a imensa base de dados federal com os registros no portal do governo paraense.
A Pública, então, desenvolveu um algoritmo que uniu características comuns às duas bases, como o nome do imóvel, município e área. A fórmula juntou todos os cadastros correspondentes e filtrou as informações relevantes para a pesquisa. Em seguida, foi feita uma checagem individual dos registros encontrados. A extração dos dados durou aproximadamente cinco dias e foi encerrada no último dia 10 de julho. (Agência Pública/ #Envolverde)
* Publicado originalmente no site Agência Pública.