Por Patricia Grogg, da IPS –
Havana, Cuba, 5/12/2016 – Fidel Castro morreu sem se arrepender de ter apoiado movimentos revolucionários armados da América Latina, embora há cerca de duas décadas tenha começado a desaconselhar essa via para se chegar ao poder, sugerindo a luta de massas e a unidade do povo. “O falecimento de Fidel, creio eu, não impacta a corrente eleitoral-pragmática que empapa os sistemas políticos da América Latina, que flutuam no vai e vem do avanço ou retrocesso econômicos das classes médias e trabalhadoras não ideologizadas”, afirmou à IPS o especialista político Patricio Zamorano, radicado nos Estados Unidos.
“Mas o fidelismo-castrista sempre estará presente como fonte moral, histórica e ideológica para os grupos políticos progressistas que virão no futuro. Disso não há dúvida. Foi e será uma referência fundamental para outros sonhos revolucionários por muitas décadas”, avaliou Zamorano, em declarações dadas por e-mail.
Em 1993, o líder histórico da Revolução Cubana, falecido no dia 25 de novembro, surpreendeu os presentes em Havana no IV Encontro do Fórum São Paulo, uma articulação de movimentos esquerdistas latino-americanos, quando insistiu nas possibilidades da luta de massas. “Vocês bem sabem que quem lhes fala participou da luta armada e apoiou o movimento revolucionário armado, do que não nos arrependemos, mas vemos claramente que, agora, nesse momento, nessas circunstâncias, não é o caminho mais promissor”, destacou Castro nessa reunião.
A seu ver, o novo caminho passava por um movimento do “povo unido, povo coordenado, povo lutando em uma mesma direção”. Seu governo promoveu o movimento guerrilheiro esquerdista na América Latina durante as décadas de 1960 e 1970, exceto no México. Esse país votou contra a resolução de 31 de janeiro de 1962, que afastou Cuba da Organização de Estados Americanos (OEA). A essa marginalização se seguiu o embargo norte-americano, ainda vigente, e o rompimento das relações diplomáticas com Cuba pelos países latino-americanos, novamente com exceção do México.
Se os anos 1960 foram os do isolamento, em um contexto de disseminação de guerrilhas e regimes ditatoriais pela região, a década seguinte supôs o começo do restabelecimento de relações bilaterais entre Havana e os países latino-americanos e caribenhos. A reinserção de Cuba nos fóruns regionais teve seu primeiro grande marco em outubro de 1975, quando o país se converteu em membro fundador do Sistema Econômico Latino-Americano (Sela), o primeiro órgão de consulta, concertação e cooperação aberto a todos os países da região, sem exclusões e sem a presença dos Estados Unidos.
Na década de 1980, houve a aproximação de Havana com o restante da América Latina, nas respostas à chamada “crise da dívida” e a participação do líder cubano nas tomadas de posse na região, e, nos anos 1990, quando a extinção da União Soviética fez o governo local se voltar para sobreviver a esse impacto. No final do século passado, começou a ficar evidente uma tendência regional para governos de esquerda ou centro-esquerda que “tomam distância” de Washington, com suas variações. Esse seria o caminho empreendido por Argentina, Bolívia, Brasil e Venezuela, entre outros.
Nessa ocasião, Castro observava com satisfação a mudança do mapa latino-americano. “É preciso refletir, deve-se observar muito e se informar bem”, afirmou, durante uma visita de Evo Morales a Havana, pouco antes de assumir a Presidência da Bolívia, nos últimos dias de 2005. Como demonstração de seu apoio ao diálogo e à negociação para resolver conflitos políticos, entre 2004 e 2005, Havana foi cenário de conversações entre o governo da Colômbia e o esquerdista Exército de Libertação Nacional (ELN) que não frutificaram.
A projeção foi continuada pelo presidente Raúl Castro, que sediou, de 2012 até este ano, o diálogo entre o governo e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) que chegaram a um acordo referendado no dia 30 de novembro pelo Congresso colombiano. “Pessoalmente, sentirei saudades, haverá uma ausência, quem me ensinará, quem cuidará de mim, quem cuidará de nós”, disse Morales, no dia 29, durante uma homenagem póstuma na Praça da Revolução, em Havana. “Fidel colocou Cuba no mapa do mundo, lutando contra a cobiça do império”, afirmou.
Os governos progressistas se beneficiaram com programas sociais, aos quais Cuba apoiou com pessoal para oferecer atenção médica, alfabetizar, promover a cultura e o esporte. Só a Escola Latino-Americana de Medicina, inaugurada em 1999, formou até agora mais de 27 mil médicos.
Nesse novo contexto, Fidel reforçou sua projeção regional. “Nunca se viu tanta rebeldia”, observou, quando, em 4 de junho de 2009, a OEA aprovou uma resolução que pôs fim “sem condições” à suspensão de Cuba como membro pleno. Mas o governo, nas mãos de Raúl Castro desde 2006, rechaçou o retorno à OEA, a qual Fidel chamava de “ministério de colônias” (dos Estados Unidos), e preferiu esquemas de integração como a Alternativa Bolivariana para os Povos de Nossa América (Alba), a União de Nações Sul-Americanas (Unasul), a Comunidade do Caribe (Caricom).
A reinserção de Havana na América Latina ficou totalmente consagrada com a participação ativa desse país na criação da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), na qual Cuba exerceu a secretaria temporária em 2013. Nesse mecanismo convivem governos de diferentes correntes políticas e ideológicas.
“Fidel falece com uma trajetória claríssima de nunca ter vacilado diante da influência externa, nem mesmo a soviética, respeitando sempre a soberania cubana”, pontuou Zamorano, para quem, “embora com realidades diferentes, Cuba, sem dúvida, influenciou processos reformistas ou de inspiração revolucionária em inumeráveis momentos da história nos últimos anos”.
Em sua opinião, se “a gesta épica dos barbudos de Sierra Maestra, e depois as mais de cinco décadas de sobrevivência da Revolução Cubana”, demonstra alguma coisa, é que é possível “para o progressismo da América Latina construir projetos alternativos à ortodoxia política que o modelo norte-americano político e econômico impõe”.
Os restos cremados de Fidel repousam desde ontem no cemitério Santa Ifigenia, de Santiago de Cuba, 847 quilômetros a leste de Havana. Essa província, considerada berço da Revolução, abrigada em Sierra Maestra, foi cenário principal da guerra de guerrilhas que comandou até tomar o poder, em 1º de janeiro de 1959.
Desde então, em pouquíssimas ocasiões foi visto sem o seu uniforme verde-oliva. No dia 30 de novembro, uma caravana com suas cinzas partiu de Havana para Santiago de Cuba para reeditar em sentido inverso, o trajeto que Fidel fez à frente dos rebeldes rumo à capital, onde chegou em 8 de janeiro.
O histórico líder cubano faleceu na noite de 25 de novembro, aos 90 anos. Ao ficar gravemente doente, no dia 31 de julho de 2006, delegou suas funções executivas ao seu irmão Raúl Castro, que assumiu plenamente a Presidência em 2008. Envolverde/IPS