Por Emilio Godoy, da IPS –
Quito, Equador, 24/10/2016 – A cúpula mundial sobre habitação sustentável e os fóruns alternativos realizados pelas organizações sociais fecharam suas sessões na capital do Equador com visões contrapostas sobre o futuro urbano e o cumprimento de direitos nesses espaços. Representantes de 195 Estados presentes na Terceira Conferência das Nações Unidas sobre Habitação e Desenvolvimento Urbano Sustentável (Habitat III) adotaram, no dia 20, a Declaração de Quito Sobre Cidades e Assentamentos Sustentáveis Para Todos, após quatro dias de deliberações.
A base da declaração, conhecida também como Nova Agenda Urbana, é a promoção do desenvolvimento urbano sustentável, prosperidade inclusiva, planejamento e gestão do desenvolvimento espacial. Nesse documento de 23 páginas, as partes se comprometem a combater a pobreza, a desigualdade e a discriminação, melhorar o planejamento urbano, e construir metrópoles resilientes à mudança climática.
Por outro lado, acadêmicos e movimentos sociais plasmaram suas concepções sobre o desenvolvimento social e os entornos urbano e rural em dois fóruns alternativos que também aconteceram entre os dias 17 e 20 deste mês, com críticas ao modelo de construção da Habitat III e questionamentos sobre as possibilidades de sua aplicação.
“Se a Nova Agenda Urbana for vista como a construção da cooperação internacional, acordada pelos países e executada pelos municípios, que não participaram de sua elaboração, o caminho seguirá rumo a uma crise, porque haverá um desencontro”, advertiu à IPS o equatoriano Fernando Carrión, coordenador-geral do fórum Para Uma Habitat III Alternativa.
Nesse fórum alternativo, realizado na Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), cerca de 140 expositores de 32 nações e 40 organizações da região discutiram sobre o direito à cidade (conjunto de direitos no âmbito urbano), diálogo com governos locais e movimentos sociais, moradia e justiça espacial, conceito semelhante ao de direito à cidade.
A Habitat, cúpula urbana organizada pela ONU Habitat a cada 20 anos, contou em sua terceira edição com a participação de cerca de 35 mil delegados de governos, organizações não governamentais, organismos internacionais, universidades e empresas, e desembocou no guia para a atuação política em matéria de assentamento nos próximos 20 anos.
Fora de Estados Unidos e Europa, a América Latina e o Caribe são a região mais urbanizada do planeta, pois 80% de sua população total, de 641 milhões de pessoas, mora em cidades. Pelo menos 104 milhões de latino-americanos residem em assentamentos informais, enquanto no mundo são aproximadamente 2,5 bilhões de pessoas morando nessas condições, segundo a ONU Habitat.
Esse fenômeno supõe um desafio em regularização de títulos de propriedade e dotação de serviços básicos, e que se soma a um cardápio de problemas, como contaminação, tráfico crescente, crescimento desordenado e desigualdade, que açoitam as metrópoles.“Precisamos repensar como organizar a cidade. Temos que nos organizar e nos mobilizar. Vamos avaliar o cumprimento por parte de governos nacionais e locais. Estes são vitais, pois deles dependerá o cumprimento de muitas coisas”, ressaltou à IPS a acadêmica Allison Brown, da Universidade de Cardiff, na Grã-Bretanha.
A Declaração de Quito recebeu críticas por causa de alguns de seus conteúdos e uma das preocupações centrais surgidas nos debates é definida com “pós-Quito”, o destino dos compromissos assumidos pelos Estados e por organizações sociais. Os acordos da Habitat III “não podem produzir a reforma urbana que necessitamos, como acesso integral ao solo com serviços. Isso se consegue com luta. A participação política local é que produz espaços para pressionar pela reforma urbana”, pontuou à IPS a brasileira Isabella Gonçalves, da organização Brigadas Populares.
Gonçalves participou do fórum social Resistência à Habitat III, que entre os dias 14 e 20 deste mês mobilizou delegados de cem organizações sociais de 35 nações para abordar assuntos como rejeição aos despejos, promoção social e defesa do direito à cidade.Em sua declaração final, o fórum social pede o fortalecimento dos movimentos que defendem a terra e o território, bem como o direito universal à moradia e questiona a Habitat III por impulsionar a urbanização, em detrimento das áreas rurais e seus moradores.
Por sua vez, a não governamental Coalizão Internacional para o Habitat criticou “a visão estreita” da Nova Agenda Urbana, lamentou que a Habitat III tenha esquecido a proteção e a remediação dos despejos forçados, o combate à carência de moradia e a busca pelo direito a esta última.
Também pede aos Estados que “regulem as transações financeiras globais, acabem ou limitem os instrumentos financeiros especulativos sem transparência, combatam a especulação imobiliária, regulem os aluguéis, melhorem a posse social, a produção e o financiamento de moradia, e previnam a privatização do espaço público”.
Os acadêmicos e movimentos sociais não querem repetir o sucedido no pós-Habitat II, realizada em 1996, em Istambul, na Turquia, cuja aplicação careceu de monitoramento e avaliação. Por isso, os que convocaram o fórum Para um Habitat III Alternativo acordaram a criação de um observatório para monitorar as decisões tomadas, com reuniões bianuais e difusão dos resultados da pesquisa e acompanhamento do andamento nas cidades.
A Declaração de Quito menciona revisões periódicas e pede ao secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU) que inclua uma avaliação sobre os avanços e desafios em seu informe quadrienal em 2026. O período transcorrido entre a cúpula de Istambul e a de Quito serve de mostra do que pode ocorrer com a Nova Agenda Urbana. O Índice de Cumprimento da Habitat, produto do Projeto Global de Futuros Urbanos, apresentado na reunião da capital equatoriana, indica o pouco avanço registrado desde 1996.
Entre 1976, quando aconteceu a Habitat I em Vancouver, e a celebração da Habitat II, a média global de cumprimento foi de 68,68%, segundo o Projeto, um esforço conjunto de universidades e organizações não governamentais radicado na New School University em Nova York, e que se baseia em indicadores de capacidade institucional, gênero, infraestrutura residencial, pobreza, emprego e sustentabilidade.
Desde a cúpula de 1996 até a deste mês, o cumprimento só avançou 1,49 pontos. A América Latina e o Sudeste Asiático elevaram suas pontuações, enquanto a África subsaariana e o norte do continente experimentaram cifras extremas de progresso e paralisação, e China e Índia não melhoraram suas posições. Quanto aos temas, em aspectos como igualdade de gênero houve um forte avanço, enquanto em infraestrutura, pobreza e sustentabilidade progrediram moderadamente.
“Não se conseguiu incluir um monitoramento pela cidadania, nem um comitê assessor da Nova Agenda Urbana. Por isso, vamos criar um mecanismo de acompanhamento. São necessários compromissos concretos” dentro da agenda, enfatizou à IPS o salvadorenho Luis Bonilla, diretor operacional da Techo Internacional.
Para Carrión, catedrático da Flacso e coordenador de grupos de trabalho do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais, “atraiu-se a atenção de muitas organizações e agora vemos o que se poderá fazer no futuro”. Assim, Quito foi, para os movimentos sociais, o começo do caminho. Envolverde/IPS