Política Pública

Guarda florestal armada ameaça indígenas

Homem mostra onde foi ferido por um guarda florestal do Parque Nacional de Virunga, na República Democrática do Congo. Foto: ZahraMoloo/IPS
Homem mostra onde foi ferido por um guarda florestal do Parque Nacional de Virunga, na República Democrática do Congo. Foto: ZahraMoloo/IPS

Por Zahra Moloo, da IPS – 

Mudga, República Democrática do Congo, 16/9/2016 – Um jovem indígena bambuti mostra onde foi ferido no braço por um guarda florestal do Parque Nacional de Virunga, na República Democrática do Congo (RDC). “Atiraram em mim antes de ontem, enquanto buscava mel e lenha”, contou Giovanni Sisiri.“Larguei tudo, peguei minhas ferramentas e corri”, acrescentou, junto com um grupo de jovens bambutis – também conhecidos como pigmeus – em Mudja, povoado que fica 20 quilômetros ao norte de Goma, cidade vizinha ao parque nas fronteiras com Ruanda e Uganda.

Os guardas armados protegem o Virunga de caçadores ilegais e intrusos, frequentemente com risco de suas próprias vidas. A legislação do país proíbe os assentamentos humanos e a caça dentro do Parque, inclusive para os bambutis, seus habitantes originais.Os pigmeus que vivem em Mudja, onde residem cerca de 40 famílias dessa etnia, reconhecem que às vezes desafiam a lei e se aventuram no Parque para recolher lenha, caçar pequenos animais e coletar produtos que não sejam madeira, mas ultimamente com mais dificuldade.

“Um pigmeu não pode viver sem o Parque. Antes, podiam entrar escondidos”, explicou Felix Maroy, agrônomo e pecuarista que trabalha com os bambutis. “Desde janeiro de 2015,os guardas sempre estão patrulhando a área. E há outros grupos armados também, como as insurgentes Forças Democráticas para a Libertação de Ruanda (FDLR)”, acrescentou.

Imani Kabasele, diretor da sucursal local da organização Programa para a Integração e o Desenvolvimento do Povo Pigmeu, recordou à IPS que, em 2014, um habitante bambuti, da localidade vizinha de Biganiro, foi buscar mel e ficou desaparecido durante três dias. Finalmente seu corpo foi encontrado, com cortes de facão. Kabasele acredita que foi assassinato pelas FDLR.

Imani Kabasele afirma que os bambutis conhecem melhor a floresta do que qualquer outra comunidade, mas agora é perigoso para eles se aventurar em seu interior. Foto: Zahra Moloo/IPS
Imani Kabasele afirma que os bambutis conhecem melhor a floresta do que qualquer outra comunidade, mas agora é perigoso para eles se aventurar em seu interior. Foto: Zahra Moloo/IPS

O rei Alberto I da Bélgica criou o Parque Nacional de Virunga, o mais antigo da África, em 1925. Essa área, que abriga um quarto dos gorilas de montanha do mundo, se estendeu posteriormente, até chegar a mais de sete mil quilômetros quadrados de território.Classificado como patrimônio da humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura em 1979, atualmente é administrado por uma associação público-privada entre o Instituto Congolense pela Conservação da Natureza (ICCN) e a Fundação de Virunga, que recebe fundos da União Europeia.

Os agricultores da RDC que vivem nos arredores do Parque dizem que sua história colonial dá a impressão de que foi “criado pelo mzungu (homem branco) para os mzungus”.Após a independência do país, foram criados outros parques nacionais. A Coalizão Mundial pelas Florestas afirma que sua criação expulsou milhares de indígenas, sem seu consentimento nem indenização pela perda de terras”, em “violação ao direito internacional” e à lei do país sobre expropriações com fins públicos.

Patrick Kipalu, representante da RDC na organização Forest People’s Programme, afirmou que há um conflito ativo entre os moradores próximos do Parque e os “conservacionistas, guardas florestais e outras organizações que trabalham pela conservação”. Para ele, “a velha escolha conservacionista no período colonial equivalia a expulsar as pessoas da floresta e a áreas protegidas sem ninguém em seu interior”.

“Quando os colonizadores abandonaram o país, os belgas instruíram os que administravam as áreas protegidas que a conservação deve ser feita sem gente, à moda antiga. São mantidas as mesmas estratégias, embora o ICCN esteja considerando uma estratégia de conservação que se supõe incluirá e envolverá as comunidades”, apontou Kipalu.

Em 2015, em carta a Kipalu, um representante dos chefes tradicionais de Lubero, localidade na costa ocidental do lago Edward, assegurou que o ICCN havia expropriado terras sem consentimento do povo afetado nem compensação. A carta também acusa o ICCN de destruir e incendiar aldeias.E um informe de 2004, preparado pelo consultor Kai Schmidt-Soltaupara o Banco Mundial, concluiu que o ICCN, junto com o Fundo Mundial para a Natureza, informou ter reassentado voluntariamente 35 mil pessoas de uma área a sudeste do lago, mas que na realidade foi um processo feito “à ponta de pistola”.

Jean Claude (direita) e seu amigo Denis Sinzira. A maioria dos jovens em Biganirosó frequenta a escola até os nove ou dez anos. Foto: ZahraMoloo/IPS
Jean Claude (direita) e seu amigo Denis Sinzira. A maioria dos jovens em Biganirosó frequenta a escola até os nove ou dez anos. Foto: ZahraMoloo/IPS

As atividades agressivas de conservação fazem parte de uma tendência generalizada para o que alguns pesquisadores chamam de militarização do conservacionismo, um enfoque de proteção da natureza pelo qual os conservacionistas se envolveriam em políticas repressivas.

Jean Claude Kyungu, encarregado de relações comunitárias do Virunga, disse que as relações do parque com os habitantes da zona são boas em algumas áreas, mas não em outras, e que os guardas só abrem fogo se há “resistência” da população, por exemplo, quando as comunidades “recrutam grupos armados para garantir a terra”. E acrescentou que os bambutis são detidos somente quando violam a lei.

Perguntado sobre a conduta repressiva dos guardas florestais e das forças armadas da RDC, Norbert Mushenzi, subdiretor do ICCN, afirmou que “os agentes atuam em legítima defesa”.“Também tentamos educar as comunidades para que encontrem soluções alternativas, por exemplo, nos campos do entorno do Parque. Havia 350 famílias em uma área que partiram voluntariamente. O problema não é a terra. É que as pessoas querem se concentrar no Parque, e não sabemos o motivo”, acrescentou.

Porém, deixar o Parque e encontrar outros lugares para viver não é tão simples. Um dos problemas, segundo Kipalu, está nos que vivem ilegalmente no Parque e não têm para onde ir. “O Parque é tão grande que inclui toda a área onde as comunidades trabalham em suas terras tradicionais”, indicou.Agrava o problema uma situação política mais ampla e complexa. Segundo um grupo de pesquisadores, Virunga fica no “epicentro do conflito em curso na RDC desde 1993, e se vê fortemente afetado pela dinâmica transfronteiriça com Ruanda e Uganda”. Também é um refúgio para numerosos grupos armados nacionais e estrangeiros.

As comunidades que entram no Parque frequentemente o fazem com a proteção de pessoal armado, e os vínculos com estes se fortalecem ainda mais por políticos que se aproveitam do sentimento generalizado de que o Parque expropriou ancestrais, o que leva esses políticos, em alguns casos, a “financiar grupos armados que operam no Parque”.

Especialistas sugerem que o Parque “adote um enfoque para a conservação que seja mais sensível aos conflitos” e que redobre os esforços para melhorar a comunicação local. Mas Kyungu acredita que a estratégia do Virunga não é particularmente repressiva, devido aos enormes desafios enfrentados.“Em Kibirizi, a população convive com as FDLR. Permitimos que essa gente faça suas próprias leis, não só em um Parque, mas em um país que não é o seu? As pessoas que não respeitam as fronteiras devem ser retiradas”, ressaltou. Envolverde/IPS

*Este artigo teve o apoio da International Women’s Media Foundation.