Por Silvia Boarini, da IPS –
Zarqa, Jordânia, 13/1/2016 – Emelline Mahmoud Ilyas, mulher de 35 anos de origem síria e que agora reside nesta cidade da Jordânia, relembra o “trajeto de morte” que a trouxe junto com sua família para esse reino hachemita, após uma reunião conjunta entre pais jordanianos e sírios para conversar sobre o cuidado de seus filhos.
Encolhida em um poço perto da fronteira junto com seu marido e os três filhos enquanto ouviam as explosões ao seu redor, Ilyas estava segura de que, mesmo que seu corpo sobrevivesse, sua mente ficaria para sempre naquele lugar. Como ia imaginar que em dois anos estaria ajudando outros refugiados sírios e jordanianos desamparados a mudarem suas vidas em Zarqa, sua cidade adotiva.
O vento e o pó deram as boas-vindas a ela e sua família ao chegarem ao acampamento de Zaatari, construído no estéril deserto, muito longe do bairro onde vivia na cosmopolita Damasco, de onde havia escapado dez meses atrás. “Jurei que, se não conseguisse sair de Zaatari, regressaria à Síria e morreria lá”, contou Ilyas à IPS, recordando sua permanência no acampamento. Em poucos dias, pagaram um traficante de pessoas para que os tirassem dali de forma ilegal, sem documentos, e assim chegaram a Zarqa.
Quando as coisas melhoraram e seu marido conseguiu trabalho em uma barbearia, ela sentiu na própria carne a solidão de ser refugiada em uma cidade estranha. Recorda que não tinha com quem conversar sobre a guerra, nem sobre o sentimento de perda. “Ficava sentada sozinha em casa, deprimida, culpando meu marido por tudo, de termos precisado deixar a Síria e de não encontrar saída”, explicou.
Na Síria, Ilyas era funcionária de um ministério e se dedicava a monitorar e inspecionar a corrupção no serviço público. Não poder trabalhar na Jordânia aumentou seu desespero. Mas, quando os filhos começaram a ir à escola, se tornou reticente em regressar à Síria, onde as escolas abriam de forma esporádica, no melhor dos casos, em um contexto de agitação. Os três menores se integraram bem e estavam contentes, só ela não era feliz.
Atualmente a imprensa cobre maciçamente a chegada de refugiados à Europa, mas somente a Jordânia, em silêncio, já abrigou desde 2011 mais de 700 mil sírios, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), e talvez sejam 1,5 milhão, somando os que entraram sem serem registrados. A superfície do reino hachemita é de 89,35 quilômetros quadrados e tem população de 6,5 milhões de habitantes, além de 2,77 milhões de refugiados.
A Jordânia asilou milhares de pessoas ao longo de sua história, principalmente palestinos e iraquianos. Mas, quatro anos depois da chegada dos primeiros refugiados sírios, não há sinais de que o fluxo vai cessar, e os desafios só aumentam. Numerosas organizações não governamentais e instituições governamentais alertam que os refugiados estão dispersos nas cidades e não se concentram nos acampamentos, onde podem facilmente ter acesso aos provedores de serviços. Os velhos enfoques de atenção não bastavam para enfrentar o desafio.
Zarqa, conhecida como a cidade natal de Abu Musab al-Zarqawi, o falecido líder da rede extremista Al Qaeda, fica no nordeste da Jordânia, tem população de mais de 500 mil pessoas, além das 50 mil de origem síria, e não está alheia às crises de refugiados. Em 1948, foi instalado um acampamento para refugiados palestinos na periferia da área urbana, que gradualmente se incorporou a essa empobrecida cidade.
Zarqa tem um elevado número de desempregados e, como as facções islâmicas gozam de apoio generalizado entre os setores mais marginalizados, está sob um rígido controle governamental por medo de uma desestabilização política. Mas as demoradas reformas fazem com que o descontentamento fermente sob a superfície. “Os aluguéis em Zarqa aumentaram 600% desde 2011, e às vezes vivem três famílias refugiadas em um apartamento”, pontuou à IPS Ohud Bayidah, coordenadora da organização ActionAid nessa cidade.
A constante chegada de refugiados agrega pressão ao sistema de saúde e escolar, e a população local se queixa de que os sírios trabalham por magros salários, o que prejudica as relações entre as duas comunidades. Mas o tradicional modelo de atenção da organização não basta para fazer frente a problemas como isolamento, violência doméstica, falta de oportunidades educacionais, desemprego ou abuso de drogas.
Para Ilyas, a situação começou a melhorar quando soube de um painel psicossocial organizado pelo Centro para Vítimas de Tortura. Compartilhar recordações de seu atribulado país lhe permitiu aliviar um pouco a pressão. “Depois senti que não estava sozinha, a esperança voltou”, ressaltou à IPS.
Após percorrer as ruas buscando atividades em organizações humanitárias, entrou em uma fila na porta de um centro comunitário da Agência das Nações Unidas para os Refugiados Palestinos no Oriente Próximo (Unrwa) e se inteirou dos círculos comunitários da ActionAid, que aproximam sírios e jordanianos. Logo se converteu em mais uma.
“Graças aos círculos pude ajudar mulheres como eu, e também jordanianas”, afirmou Ilyas. Homens e mulheres se reúnem uma vez por semana, em separado. “Discutimos assuntos pessoais ou familiares e falamos sobre como podemos resolvê-los recorrendo aos provedores de serviços ou nos apoiando mutuamente”, detalhou.
Os círculos comunitários ajudam as organizações a identificar os principais problemas que afetam tanto sírios como jordanianos e a fornecer a ajuda necessária. “A violência doméstica é um grande tema, da mesma forma que a exploração infantil”, observou Bayidah. Esses círculos também ajudaram a coordenadora da ActionAid, originária de Karak. Ela é a primeira em sua família a terminar a universidade e a primeira a se trasladar por conta própria para Amã.
“Meu pai sempre foi de mente aberta quanto à minha educação, mas convencê-los a me mudar sem estar casada foi difícil”, contou Bayidah, de 28 anos. Quando lhe disse que a alternativa a essa oportunidade de trabalho era ficar triste em casa, concordou com um teste de um mês. “Tentaram me convencer a voltar, mas agora sabem que sou feliz. Ajudo minha comunidade e estão muito orgulhosos”, ressaltou.
Quanto a Ilyas, apesar de usar o lenço para cobrir a cabeça para se misturar às pessoas em Zarqa, significou uma grande mudança para ela. Os círculos lhe abriram a porta para o ativismo como nunca havia imaginado. “Conversava com minha irmã, que ainda está na Síria, e não podia acreditar que isso fosse possível aqui, que as pessoas se organizassem assim, livremente”, afirmou.
Para Ilyas, no momento basta que os círculos a tenham ajudado a subir aquele poço da fronteira. “Deveria ser essa a refugiada que todo mundo deveria cuidar, mas agora as pessoas me agradecem por ajudá-las, acreditam que sou jordaniana”, alegrou-se. Envolverde/IPS