Por Athar Parvaiz, da IPS –
Srinagar, Índia, 22/7/2015 – A jovem indiana Rizwana apenas desejava e esperava que a justiça fizesse seu trabalho e que o homem que a violou recebesse um castigo na medida de seu crime. Mas ele continua livre, meses depois da terrível experiência que lhe coube viver, no Estado de Jammu e Caxemira, no norte da Índia. Procedente de uma família pobre do noroeste de Jammu e Caxemira, ela trabalhou duro para terminar seus estudos e poder conseguir trabalho para aliviar as dificuldades econômicas de sua família.
Quando este ano foi contratada como assistente no fronteiriço distrito de Kupwara, Rizwana (nome fictício) pensou que havia ganho na loteria. Mas logo descobriria que o apoio e o interesse em contratá-la, por parte de um dos funcionários, tinha motivos ocultos. “Depois de alguns dias trabalhando, me chamou em uma sala do andar superior e trancou a porta. Depois fez insinuações sexuais. Quando me queixei, ele me violou”, contou a jovem à IPS.
O fato impactou toda a família. Ela deixou de trabalhar e sua mãe esteve internada algumas semanas após sofrer um ataque de pânico. Rizwana entrou em contato com a Comissão Estatal de Mulheres, com sede em Srinagar, capital de verão deste Estado, e pediu que o funcionário implicado deixasse o cargo e fosse preso. “Mas até agora não aconteceu nada. A comissão me apoia, mas o violador ainda deve ser processado, porque recorreu às suas influências para se livrar”, afirmou.
Esse caso não é o único. Todos os anos milhares de mulheres sofrem abusos físicos ou sexuais, dentro ou fora de suas casas, e pouquíssimas fazem a denúncia. As defensoras dos direitos femininos afirmam que o conflito na Caxemira – que remonta a 1947, quando da divisão da Índia, e já fez 60 mil vítimas fatais em seis décadas – alimenta uma cultura de impunidade que deixa as mulheres em situação de extrema vulnerabilidade diante da violência de gênero.
Em 2007, o governo indiano revelou que havia 337 mil militares na região. Na época, esse número representava cerca de um soldado para cada 18 pessoas, o que faria da Caxemira a “região mais fortemente militarizada do mundo”, segundo o especialista em política Bashir Ahmad Dabla.
Em 2013, a relatora especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para a violência contra a mulher apontou, em seu informe final sobre a Índia, que normas como a Lei de Poderes Especiais das Forças Armadas e a mesma lei para Jammu e Caxemira haviam promovido a impunidade em matéria de violação de direitos humanos. As leis impedem que os soldados sejam processados em tribunais regulares por crimes cometidos contra mulheres civis, entre outros, e invalida o direito ao devido processo.
Ao constatar que a impunidade das forças armadas “mina as liberdades e os direitos fundamentais, como a dignidade e os direitos sobre a integridade física das mulheres em Jammu e Caxemira”, a relatora exortou o governo indiano a revogar a lei. Dois anos depois, ainda não foram adotadas as recomendações e, com isso, não só os soldados mas também os diferentes funcionários se sentem livres para violar os direitos femininos, em geral mediante abusos sexuais.
Por exemplo, a IPS teve acesso ao processo por assédio sexual apresentado em bloco pelo pessoal feminino da Universidade de Agricultura da Caxemira, um recurso para proteger a identidade das implicadas, junto à Comissão Estatal de Mulheres. Elas pedem um “duro castigo” para os responsáveis, segundo as disposições sobre assédio sexual da Lei (de emenda) do Código Penal de 2013. Nayeema Ahmad Mehjoor, presidente da Comissão Estatal de Mulheres, afirmou à IPS que tomou medidas ao receber o expediente e que já visitou a Universidade para levar o assunto às autoridades competentes.
Segundo especialistas, a situação é muito pior no âmbito doméstico, onde a violência conjugal cresce. Gulshan Akhtar, responsável pela única Delegacia da Mulher, esteve muito atarefada nos últimos anos com o crescente número de casos de violência contra a mulher que ocorrem dentro de casa. Em um dia comum, pode chegar a tramitar entre sete e dez casos de disputas domésticas que incluem violência contra a mulher.
“Quando esta delegacia foi criada, em 1998, recebíamos muito menos denúncias em comparação com os últimos cinco anos. Agora chegam entre mil e 1.500 denúncias de violência doméstica por ano”, afirmou Akhtar, acrescentando que a Comissão Estatal da Mulher recebe outras 500 no mesmo período. Segundo esses números, considerados conservadores já que muitas mulheres sofrem em silêncio, a cada dia na Caxemira cerca de cinco mulheres suportam abusos físicos ou sexuais.
Versões da imprensa local indicam que Jammu, capital de inverno do Estado, encabeça a lista de distritos com maior violência doméstica, com cerca de 1.200 incidentes distintos desde 2009. O Ministério do Interior informou que quatro mil infratores foram processados por esse tipo de crime, segundo informou a imprensa, mas as organizações de direitos da mulher afirmam que o número de processados é muito baixo para dissuadir os futuros agressores.
Em uma mobilização realizada em Srinagar, em maio, para denunciar a situação, Ezabir Ali, secretária da organização de mulheres Ehsaas, destacou que “já é hora de denunciarmos essa forma bárbara de natureza humana, e enviarmos uma mensagem ao governo para que atue de forma rígida contra esse tipo de ato”.
Dados da organização Crime Branch indicam que em 2013 a Caxemira registrou 378 casos de violação, 75 a mais do que no ano anterior. Ainda não está disponível a informação sobre o período 2014-2015.
Um documento de 2014 da organização Human Rights Watch, com sede nos Estados Unidos, destaca que “um tribunal local ordenou a reabertura de uma investigação sobre supostas violações em massa nos povoados de Kunan e Poshpora, no distrito de Kupwara, em 1991. A população local afirma que os soldados violaram mulheres durante uma operação de busca”.
A brutalidade desses incidentes e o fato de as vítimas terem sido tanto mulheres idosas como menores de idade assentaram um precedente, segundo acadêmicos e ativistas, pois os culpados nunca foram processados. Há quem afirme que o fato se deve às mudanças no papel que a tradição reserva à mulher nesta região, em parte promovidas pelo próprio conflito. Com a morte de milhares de homens que se encarregavam de manter a família, muitas mulheres foram obrigadas a entrar para o mercado de trabalho.
Estudos realizados por Ehsaas revelam que “75% dos homens entrevistados em Jammu e Caxemira “sentiam sua masculinidade ameaçada” se suas mulheres não os obedecerem. São necessárias mudanças fundamentais, tanto legais como de comportamento, se a intenção é conseguir certo grau de igualdade de gênero e de respeito pelos direitos da mulher para conseguir criar uma sociedade mais pacífica, afirmam várias ativistas. Envolverde/IPS