Internacional

Bombas turcas caem em hortas curdas

 Rinaz Rojelat, o único comerciante que resta na aldeia de Zergely, nas montanhas de Qandil, no Curdistão iraquiano. Seu comércio fica bem em frente às ruínas das casas de seus vizinhos, destruídas pelo bombardeio da aviação turca em agosto deste ano. Foto: Karlos Zurutuza/IPS

Rinaz Rojelat, o único comerciante que resta na aldeia de Zergely, nas montanhas de Qandil, no Curdistão iraquiano. Seu comércio fica bem em frente às ruínas das casas de seus vizinhos, destruídas pelo bombardeio da aviação turca em agosto deste ano. Foto: Karlos Zurutuza/IPS

Por Karlos Zurutuza, da IPS – 

Montanhas de Qandil, Iraque, 26/10/2015 – Presos na escalada da violência entre o governo de Ancara e o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), os moradores deste reduto da guerrilha sofrem impotentes os ataques constantes da aviação turca. Na única loja da aldeia de Zergely não faltam umas conhecidas bolachas turcas de chocolate e laranja ou as pás para abrir caminho em meio à neve. Naturalmente, também estão à venda os populares relógios contendo em sua esfera o rosto de Abdulla Ocalan, o líder histórico do PKK, preso em um cárcere turco desde 1999.

Rinaz Rojelat, seu proprietário, continua vendendo praticamente tudo o que a terra não dá aos moradores dessas imponentes montanhas de Qandil. Mas são tempos difíceis, e ele assegurou à IPS que perdeu muitos clientes ultimamente. Ele se refere aos que fugiram e, sobretudo, aos oito vizinhos assassinados no dia 1º de agosto pela aviação da Turquia. O cartaz colocado junto à sua loja os recorda, bem como os escombros de suas casas, a escassos cem metros.

“A explosão me acordou de madrugada. Naquele primeiro ataque morreu uma mulher, e o restante após um segundo impacto, quando muitos de nós tentávamos ajudar os feridos”, recordou o comerciante, que continua contemplando incrédulo o sinistro cenário à frente de sua loja.

Ao contrário de Rejelat, muitos preferiram abandonar essas indômitas montanhas para descer para o vale, alguns inclusive até Erbil, a capital administrativa da Região Autônoma Curda no Iraque.

Mohamed Sabah optou por cuidar de seus cultivos e animais em Zergely durante o dia e dormir na casa de alguns familiares em Bagirke, a dez minutos de carro. “Depois do ataque pensei em ir embora e jamais voltar, mas do que iria viver em Erbil? Sou camponês, minhas terras e meus animais estão aqui”, disse esse curdo de 28 anos, em uma horta cheia de pepinos anexa ao entulho.

Alguns restos do bombardeio contra Zergely, uma das aldeias curdas das imponentes montanhas de Qandil, realizado pela aviação turca em agosto deste ano. Foto: Karlos Zurutuza/IPS
Alguns restos do bombardeio contra Zergely, uma das aldeias curdas das imponentes montanhas de Qandil, realizado pela aviação turca em agosto deste ano. Foto: Karlos Zurutuza/IPS

Três de seus familiares ficaram feridos em agosto, e ele já havia perdido um irmão em um ataque semelhante em 1997, porque os bombardeios de Qandil estão longe de ser resultado da recente conjuntura bélica no Curdistão. Em todo caso, o certo é que os ataques se intensificaram desde o dia 20 de julho deste ano, quando um atentado suicida tirou a vida de mais de 30 jovens ativistas pró-curdos, a maioria deles turcos.

Assim, o malogrado processo de paz entre Ancara e os curdos desembocava em uma espiral de violência, cujo episódio mais dramático foi vivido no dia 10 deste mês, com outro atentado suicida que matou uma centena de pessoas em Ancara. Precisamente, essa última aproximação entre Turquia e curdos começou oficialmente nas montanhas de Qandil.

Foi durante as celebrações do Newroz (o ano novo persa e curdo) em março de 2013 quando se fez público o anúncio de Ocalan, indicando o último cessar-fogo unilateral da guerrilha curda. A falta de hotéis na região levou este jornalista a ser acomodado em uma das casas destruídas em agosto em Zergely. Os mortos eram camponeses, como todos no lugar. Porém, a Turquia justifica o bombardeio assegurando que se tratava de “uma base para terroristas do PKK”.

A cerca de dez quilômetros ao sul, a aldeia de Bokriskan abriga o único hospital de Qandil. Trata-se de um modesto edifício erguido pela guerrilha após a destruição do anterior na localidade de Leuza, em 2008. Como naquele, o de Bokriskan é administrado por uma enfermeira de origem alemã que decidiu exercer seu oficio nesta parte do mundo há mais de 20 anos e que adotou para si o nome de Media. Pode ser que se trate apenas de um centro médico, mas os moradores estão conscientes de que apenas sua presença pode provocar que o céu caia sobre suas cabeças com punhos de aço. Aqui tampouco seria a primeira vez.

Maryam Hussein dormia em sua casa a poucos metros do hospital quando as bombas caíram em Zergely. Aquela madrugada foi a última vez em que viu seu marido. Após a explosão, Abdul Kadir Abu Baker não vacilou em ir até a aldeia para socorrer os feridos. Morreu no segundo ataque. Sua viúva disse à IPS que não voltou a pisar nem em Bokriskan, nem em Zergely, desde então.

Maryam e Dalyan Hussein, viúva e cunhado de um dos quatro mortos na aldeia curda de Zerbely, durante ataque da aviação turca, afirmam que os bombardeios sobre as populações das montanhas de Qandil são constantes. Foto: Karlos Zurutuza/IPS
Maryam e Dalyan Hussein, viúva e cunhado de um dos quatro mortos na aldeia curda de Zerbely, durante ataque da aviação turca, afirmam que os bombardeios sobre as populações das montanhas de Qandil são constantes. Foto: Karlos Zurutuza/IPS

“Fui viver com meus pais, mas continuo tendo medo porque aqui não há lugar seguro”, afirmou a viúva, de sua aldeia natal de Nawchelekan. Ao seu lado, seu irmão Dalyan perguntou à IPS: “teria sido outro o destino sem a presença do PKK na área?”. “A Turquia não faz distinções entre civis e guerrilheiros. Além disso, suas bases estão muito longe de nossos povoados”, acrescentou Dalyan, que, segundo terceiros, recolheu os restos de seu cunhado em um saco.

Desde o recrudescimento das hostilidades, no mês de julho, a Turquia assegura ter acabado com a vida de mais de dois mil combatentes do PKK. A guerrilha, por sua vez, afirma que suas perdas não chegam a uma centena. “Levamos muitos anos suportando esses ataques e sabemos de sobra como nos proteger”, disse à IPS Sauas Amed, uma alta patente dentro do PKK.

Essa dança de números torna impossível dar estimativas de baixas condizentes com a realidade, mas o que é facilmente comprovável é o mal-estar político que as qualificadas como “operações transfronteiriças” pelo Executivo de Ancara provocam neste lado da fronteira.

Em conversa telefônica com a IPS desde Bagdá, Arez Abdula, parlamentar pela União Patriótica do Curdistão na Câmara de Representantes (deputados) do Iraque, acusou a Turquia de cometer “flagrantes violações do direito internacional”. Também lamentou que os bombardeios tenham se convertido em “rotina desde tempo imemorial”, diante da impotência tanto das autoridades de Erbil quanto de Bagdá.

“Nós, iraquianos, temos não só que suportar essas agressões, como também que localidades como a cidade de Mosul tenham caído em mãos do Estado Islâmico, graças ao apoio que este recebe da Turquia”, afirmou o deputado. A delicada situação tanto política como econômica que passa o país torna inviável uma resposta contundente a Ancara, acrescentou.

Mas o último comerciante de Zergely assegurou não ter medo dos bombardeios e disse que não partirá, “nem mesmo se seus clientes desaparecerem”. Sem dúvida, seu comércio conheceu tempos melhores, como aquele Newroz de 2013, quando milhares de curdos se reuniram aqui diante do esperado comunicado de Ocalan. “Nenhum de nós tinha muitas esperanças naquele processo de paz. Mas tampouco esperávamos isso dois anos depois”, confessou o comerciante, antes de baixar a persiana. Envolverde/IPS