Internacional

Ceuta, enclave espanhol que ignora migrantes

O radar funciona em silêncio e sem cessar em cima do monte Hacho, em Ceuta, para identificar os imigrantes que tentam entrar no enclave espanhol. Foto: Andrea Petrachin/IPS
O radar funciona em silêncio e sem cessar em cima do monte Hacho, em Ceuta, para identificar os imigrantes que tentam entrar no enclave espanhol. Foto: Andrea Petrachin/IPS

Por Andrea Petrachin, da IPS – 

Ceuta, Espanha, 27/7/2015 – Alguns quilômetros antes da fronteira entre Marrocos e o enclave espanhol de Ceuta, um cartaz informa aos transeuntes que este posto avançado da Espanha em solo africano ocupa um lugar privilegiado para os que desejam observar a migração anual das aves através do estreito de Gibraltar, a rota mais curta da África para a Europa. Mas a população de Ceuta prefere manter o silêncio e não chamar a atenção sobre outro fenômeno que ocorre no enclave.

Na fronteira há enormes barreiras para bloquear as tentativas diárias dos migrantes africanos de escapar da fome, do desespero e, com frequência, dos conflitos armados em seus países de origem.

O silêncio foi quebrado drasticamente no começo de maio, quando uma máquina de raio X na aduana fronteiriça detectou Abu, um menino de oito anos oriundo da Costa do Marfim, dentro de uma mala com a qual seu pai pretendia entrar no enclave espanhol. Essa é uma das últimas estratégias, mais ou menos engenhosas, utilizadas pelos migrantes amontoados nas florestas marroquinas junto à fronteira espanhola com a intenção de traspassar a chamada “fortaleza Europa”.

Ceuta é um dos principais e escassos “portais” no norte da África que abrem caminho para o território da União Europeia (UE). Esse portal está fechado desde o final da década de 1990, quando as autoridades espanholas começaram a construir ao redor do enclave dois muros paralelos de seis metros de altura arrematados por arame farpado, além de postos de vigilância e uma rua entre os dois muros para as patrulhas policiais. O mesmo acontece em Melilla, o outro enclave espanhol na África.

Embora não chamem a atenção dos meios de comunicação, como ocorreu com Abu, todos os dias jovens imigrantes africanos, quase todos entre 15 e 30 anos, tentam chegar ao território espanhol de maneiras tão ou mais perigosas que o método escolhido pelo pai de Abu.

A grande maioria faz a tentativa por mar, já que Ceuta está situada na península Tingitana, na margem africana do estreito de Gibraltar, e é banhada ao norte, leste e sul pelo Mar Mediterrâneo. Eles embarcam principalmente em lanchas ou escondidos sob botes infláveis, daqueles que as crianças costumam usar na praia. Em fevereiro do ano passado, 15 africanos morreram tentando superar o cerco a nado, quando os guardas fronteiriços dispararam balas de borracha na água. Outros tentam cruzar a fronteira escondidos em compartimentos secretos sob automóveis, e alguns inclusive tentam escalar as cercas.

O que mais chama a atenção sobre Ceuta são suas surpreendentes contradições. A cidade, com pouco mais de 80 mil habitantes em 18,6 quilômetros quadrados, e orgulhosamente espanhola desde 1668, passa a impressão de querer viver como se os migrantes africanos e suas tentativas de entrada no enclave não existissem. Quando a imprensa de todo o mundo dedicava suas manchetes ao caso de Abu, a notícia mais destacada no site de um dos dois jornais de Ceuta era o resultado de uma pesquisa de opinião sobre as próximas eleições administrativas.

O Centro de Estadia Temporária de Imigrantes, onde são alojados todos os migrantes africanos que conseguem entrar no enclave, é uma estrutura enorme que está praticamente oculta e é impossível de ser vista de qualquer lugar da cidade ou das colinas atrás dela.

Ceuta é singular do ponto de vista demográfico, já que 50% da população é marroquina ou de origem marroquina. A população se divide em algo semelhante a um sistema de castas, firmemente estabelecido e bastante rígido. A maior e mais rica das comunidades é a espanhola, cujos membros costumam ser muito conservadores, religiosos e aferrados às tradições. O conservador Partido Popular governa a cidade há décadas e se opõe a toda mudança no statu quo. Assim, por exemplo, o idioma árabe não é ensinado nas escolas.

O segundo grupo é dos ceutas marroquinos, integrado por súditos espanhóis de origem marroquina ou por súditos marroquinos com residência e permissão de trabalhar. Alguns desses ceutas marroquinos fizeram grandes fortunas graças ao contrabando de mercadorias pela fronteira, mas muitos outros vivem no bairro empobrecido de El Príncipe, onde os atritos com a população espanhola são ocasionalmente graves. Esse subgrupo inclui um pequeno, mas importante, número de crianças apátridas que nasceram no enclave espanhol de pais marroquinos.

Em consequência do vencimento das permissões de residência de seus progenitores, ficaram em uma situação de ilegalidade no território espanhol e não tiveram a possibilidade de registrar o nascimento de seus filhos no Marrocos. Nenhum desses meninos ou meninas tem acesso a escola pública, embora a lei espanhola estabeleça o direito a educação de todas as crianças no território espanhol, independente de sua nacionalidade ou situação jurídica.

O terceiro grupo é o dos transfronteiriços, os marroquinos que residem majoritariamente no vizinho povoado de Fnideq e que cruzam a fronteira todos os dias para trabalhar em Ceuta ou comprar e vender produtos no mercado negro. Um acordo, assinado pelos governos da Espanha e do Marrocos na década de 1960, estipula que o que uma pessoa pode carregar sobre seus ombros está isento de impostos aduaneiros.

Um quarto grupo é o dos chamados “negros”, a casta de migrantes que a cidade procura ignorar, sem levar em conta que são a fonte de suas principais rendas, os fundos que o Estado espanhol e a UE destinam às autoridades locais, e que sua presença justifica numerosos postos de trabalho nos setores público e de segurança.

Ceuta é, mais do que tudo, um posto militar. A quantidade de policiais, guardas civis e soldados que patrulham ou simplesmente passam pelos poucos caminhos do enclave é impressionante, bem como o número de exercícios militares realizados no território. O mar é constantemente patrulhado pelas lanchas de borracha do exército e da polícia da Espanha e do Marrocos.

Aqui, o espectro da morte, a morte de muitas pessoas que tentam cruzar a fronteira, persiste inclusive no nome da montanha marroquina mais próxima de Ceuta, Jebel Musa, também conhecida como Mulher Morte. Envolverde/IPS