Por Ivet González, da IPS –
Cárdenas, Cuba, 29/5/2015 – Os cartazes de “vende-se esta casa” e outros com o número de licença para construção, que inundam as cidades de Cuba, testemunham a redução de controles no direito a moradia, embora o setor ainda esteja preso em meio às regulamentações do Estado. “É ilusório pensar que a possibilidade de dispor livremente da propriedade da moradia represente uma mudança”, explicou o jurista Regino Gayoso, sobre a permissão de 2011 para a população vender, doar e comprar casas, após 33 anos de proibição.
As novas disposições constituem um “alívio”, apontou Gayoso, se referindo ao impacto da norma de 2011 e do Decreto Lei 322, que em setembro do ano passado flexibilizou os procedimentos para reformar e construir casas “por esforço próprio”, como se define localmente a autoconstrução, inclusive com apoio de profissionais particulares. Também permite a aquisição por pessoas naturais de terrenos estatais ociosos.
Os dois decretos modificam a Lei Geral da Habitação de 1988, pela qual “o controle estatal sobre o tema imobiliário continua” e desconhece as “diferenças econômicas que existem hoje, porque a sociedade está se estratificando”, acrescentou o jurista. Para ele, continua pendente “projetar uma nova lei que reflita nossas realidades, livre realmente dos inúteis controles” e que contribua para “deixar os mais vulneráveis em igualdade de condições com os demais”, quando a centralizada economia cubana cede espaço aos pequenos negócios particulares, cooperativas e ao capital estrangeiro.
Gayoso, que trabalha no estatal Centro de Estudos de Administração Pública (Ceap), foi um dos especialistas que se aprofundou em temas de justiça e direitos durante um painel do Projeto Cuba Possível, organizado pelos laicos católicos Roberto Viega e Lenier González no Centro Cristão de Reflexão e Diálogo-Cuba.
Encravada na cidade costeira de Cárdenas, 150 quilômetros a leste de Havana, essa instituição ecumênica recebeu, entre os dias 22 e 24 deste mês, 41 pessoas de várias províncias que coincidiram quanto à necessidade de focar mais nos efeitos sobre os direitos econômicos das reformas iniciadas em 2008 pelo governo de Raúl Castro.
Além de propostas de mudanças no Código Penal, a necessidade de adequar a Constituição às mudanças socioeconômicas e de liberar de tabus a questão dos direitos humanos, o encontro apresentou reflexões sobre as garantias econômicas, incluída a da moradia, neste país de 11,2 milhões de habitantes.
A permuta era a única via que, por décadas, os proprietários locais e estrangeiros que residiam de forma permanente em Cuba tinham para mudar de moradia, devido a um emaranhado de decretos e 188 disposições. Esse mecanismo era burocrático e exigia a autorização de várias autoridades, o que, na prática, propiciava as ilegalidades. A venda de um imóvel só podia ser feita ao Estado e a moradia era confiscada se o proprietário deixasse o país.
Após as reformas, incluída em 2012 a migratória, a propriedade é preservada por 24 meses, mas o proprietário a perde se não visitar a ilha durante esse período. “A meta é que os cubanos saiam livremente do país sem perder nada”, destacou Gayoso. A seu ver, em Cuba, “a política social habitacional foi sustentada por mais de 30 anos, mas não foi sustentável”.
O especialista também ressaltou que a maioria da população carece de recursos para ter acesso ao incipiente mercado imobiliário, que já conta com agências privadas, como La Isla e o site Isladata, uma plataforma na internet que recopila, sistematiza e oferece dados constantes sobre a atividade.
“O principal problema é o quanto é difícil e caro ter uma moradia em Cuba para quem, como eu, não herdou uma”, contou Olga Estupiñan, residente em uma pequena localidade vizinha a Havana. Esta técnica em construção, que trabalha para uma empresa estatal e cujo marido é operário, conseguiu comprar uma casa inacabada em 2012, graças a um empréstimo sem juros feito por um familiar. “Já pagamos a dívida e agora estamos fazendo os reparos. Essa é outra parte complexa, porque além de caros, nem sempre há nas lojas estatais todos os materiais de construção”, acrescentou à IPS.
Dados oficiais de 2013 indicam que apenas 61% das moradias cubanas estão em bom estado e boa parte do restante precisa de reparos estruturais, devido ao efeito da crise econômica que o país vive desde 1991, por causa do descumprimento de projetos de construção, pelos altos preços dos materiais e da mão de obra, e por danos causados pelos furacões que afetam frequentemente a ilha.
Em 2004, havia no país um déficit superior a meio milhão de unidades habitacionais, e desde então as moradias terminadas por ano não cobrem o déficit. Por isso, as autoridades esperam que com a reforma os atores privados sejam os protagonistas do desenvolvimento do setor.
Em 2014 foram terminadas 25.037 moradias novas no país, das quais 51% foram por esforço próprio, segundo o estatal Escritório de Estatísticas e Informação (Onei). Mas a produção de insumos básicos para a construção caiu no ano passado com relação a 2013 em quase todos os itens.
Gayoso propõe resgatar mecanismos como “a hipoteca da moradia de ocupação permanente”, que sirvam de garantia de pagamento para que setores de baixa renda tenham acesso maior aos microcréditos dos bancos estatais, e assim reduzir os despejos por falta de pagamento.
Agora, para ter acesso a esses empréstimos, as pessoas podem apresentar um fiador solidário, a garantia de bens como joias e automóveis, ou hipotecar um terreno ou uma casa de veraneio. “Quantos trabalhadores são proprietários de uma casa de veraneio, de joias ou de um carro?”, perguntou Gayoso.
O Estado cubano é o principal empregador, e paga salários mensais de US$ 23, em média, embora no setor da saúde alguns especialistas recebam mais de US$ 100, como os trabalhadores de setores produtivos com sistemas de pagamento por resultados.
Fontes oficiais indicam que estão nas mãos de titulares 90% das moradias, e o último censo realizado em 2012 registrou 3.885.900 unidades habitacionais. Entre maio de 2012 e janeiro de 2015, os governos locais aprovaram 63 mil subsídios, que representaram US$ 40 milhões para melhoria de moradias de particulares. Os bancos concederam em igual período créditos de US$ 200 mil para reparação de moradias.
A reforma muda a maneira de entender e garantir “direitos sociais econômicos e culturais”, explicou à IPS o jurista Julio Antonio Fernández, que também participou do painel Cuba Possível. “O maior desafio do país é manter os serviços gratuitos e universais de educação e saúde com mais qualidade”, afirmou este pesquisador do Ceap.
Fernández lamentou que no novo contexto “falte a análise de quais direitos necessitamos e até dos que ganhamos que não são reconhecidos na lei, porque há muito tempo se criou um tabu sobre os direitos humanos no país”. Envolverde/IPS