Por Liliane Spendeler, da IPS –
Madri, Espanha, 21/10/2015 – A luta de organizações e movimentos sociais contra esquemas de comércio internacional depredador e destruidor não data de ontem. Na década de 1990, se focava nas negociações globais dentro da Organização Mundial do Comércio (OMC). Mas, paralelamente, estava surgindo com força a assinatura de acordos comerciais bilaterais ou multilaterais, tornando muito mais difícil seu acompanhamento por parte da sociedade.
A Europa não ficou à margem dessa tendência. No tocante à relação entre União Europeia (UE) e América Central, por exemplo, apesar de a década de 1980 ter propiciado a assinatura de alguns acordos bilaterais entre Estados das duas regiões, foi a partir dos anos 1990 que esses contaram com um auge maior.
Hoje em dia existem 56 acordos de Promoção e Proteção Recíproca de Investimentos entre países europeus e centro-americanos, e, por outro lado, um Acordo de Associação assinado entre América Central e União Europeia.
Os tratados de comércio e investimento são um dos instrumentos de internacionalização das empresas europeias, que garantem seu acesso aos mercados mundiais e aos recursos em outras partes do mundo. Tecem um emaranhado jurídico que protege os interesses das multinacionais, uma armadura cujo poder é muito superior ao dos acordos internacionais ou das legislações estatais em matéria ambiental e social.
Nesse contexto, é interessante documentar o que vem sendo denunciado por organizações e pessoas em todo o mundo: ao contrário do que as elites governamentais e empresariais querem fazer crer, esses tratados comerciais incentivam um modelo de expansão corporativa que impacta de forma direta na vida das pessoas e contribui para o avanço da atual crise ecológica.
Por essa razão, a Amigos da Terra, com colaboração do Observatório de Multinacionais na América Latina (Omal) – Paz com Dignidade, quer aportar dados das relações comerciais entre UE e América Central e caracterizar como a União Europeia criou um contexto jurídico e político que blinda os interesses de suas transnacionais nessa região. Nesse caso, não foi um problema o fato de os Estados Unidos serem o principal sócio comercial e investidor na região centro-americana, muito pelo contrário: essa situação facilitou as negociações com a UE.
A existência prévia de um tratado de livre comércio com os Estados Unidos (CAFTA-DR) permitiu avançar na liberalização e desregulamentação de numerosos setores, abrindo o caminho para mais mercantilização de serviços e bens e mais desregulamentação das compras públicas, tal e como consta do Acordo de Associação entre a UE e a América Central, que entrou em vigor em 2013. Fazem parte dessa mesma lógica os 56 acordos entre Estados das duas regiões.
Dessa forma, junto com a extensão das políticas neoliberais que privatizaram e desregulamentaram setores como o energético, cria-se um contexto favorável à entrada das transnacionais. Uma situação que não passou despercebida pelas transnacionais europeias, especialmente as do setor de eletricidade, que abriram um espaço no mercado, tanto da geração como da distribuição. As mais importantes são a italiana Enel/Endesa, a francesa GDF Suez, a britânica Actis Globeleq e a espanhola Gas Natural Fenosa.
A instalação dessas empresas na região centro-americana está associada aos consequentes impactos ambientais e sociais. As comunidades afetadas denunciam o saque dos recursos naturais, a má qualidade ou falta do serviço supostamente prestado, a precariedade trabalhista, os atropelos dos direitos humanos e a deterioração dos ecossistemas.
Porém, as vítimas não encontram respostas nos tribunais estatais, e tampouco existe uma instância internacional que julgue as empresas transnacionais e seus dirigentes pela violação do Direito Internacional dos Direitos Humanos e do Direito Internacional do Trabalho.
Por essa razão, a sociedade civil se vê obrigada a buscar uma via de justiça alternativa, em particular junto ao Tribunal Penal dos Povos. Assim, as espanholas Gas Natural Fenosa e Hidralia, e a italiana Enel foram denunciadas nesse tribunal popular por suas práticas destrutivas na América Central.
Bem ao contrário, as transnacionais têm ao seu alcance não só a própria justiça estatal dos países onde operam, mas também podem se dirigir a tribunais de arbitragem internacionais, nos quais denunciam os Estados quando consideram que estes atentam contra seus investimentos e interesses. Este mecanismo privado de resolução de conflitos entre investidores e Estados (ISDS), é uma característica comum dos tratados de livre comércio e investimentos.
Os ISDS estão acima das leis e dos tribunais dos Estados, colocam o perigo nas tentativas estatais de reforçar a proteção social e ambiental, e só se aplica em uma direção: as empresas podem denunciar os Estados, mas não o contrário e muito menos os povos e as comunidades afetadas pelas atividades empresariais. Um atentado à democracia e à justiça.
Até hoje, o número total de demandas apresentadas pelas multinacionais (incluindo as não europeias) contra os países centro-americanos junto ao Centro Internacional de Acordo de Diferenças Relativas a Investimentos (Ciadi) chega a 25.
A Costa Rica foi levada nove vezes perante esse tribunal de arbitragem. Pode-se apreciar que a evolução temporária das denúncias contra os Estados está diretamente relacionada com a assinatura e entrada em vigor dos tratados que incluem a proteção e promoção de investimentos na região.
Quanto às empresas de energia europeias, duas utilizaram esse mecanismo. Em 2009, a Iberdrola processou a Guatemala junto ao Ciadi por causa de uma disputa no estabelecimento de tarifas, e em 2013 a italiana Enel processou El Salvador pela paralisação de um projeto geotérmico quando o Estado centro-americano detectou irregularidades.
Essa situação não pode causar indiferença. A experiência entre a UE e a América Central deixa claro como os tratados de livre comércio e investimentos representam um forte instrumento de proteção dos interesses das transnacionais, criando uma armadura de segurança jurídica dos investimentos, acima dos direitos sociais, ambientais e democráticos das populações.
Nesse sentido, a Europa deve revisar em profundidade sua política de expansão para o exterior, bem como sua negação em apoiar um tratado internacional vinculante sobre empresas e direitos humanos, tal e como o faz atualmente dentro da Organização das Nações Unidas (ONU).
Por outro lado, é imprescindível considerar a advertência que apresenta a experiência da América Central, rechaçando a assinatura da Associação Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP), da UE com os Estados Unidos, e a ratificação do Acordo Integral de Economia e Comércio (Ceta), do bloco europeu com o Canadá.
Na Semana Internacional de Ação Contra os Tratados de Livre Comércio, realizada entre 11 e 17 deste mês, foi possível ver como os cidadãos de toda a Europa dizem “NÃO” tanto ao TTIP como ao Ceta e ao Acordo de Comércio de Serviços (Tisa). Com tanta gente nas ruas gritando, esperamos que nossos representantes políticos deixem de se fazer de surdos. Envolverde/IPS
* Liliane Spendeler é diretora na Espanha da Amigos da Terra.