Por Fabiana Frayssinet, da IPS –
Buenos Aires, Argentina, 29/5/2015 – A morte de dois meninos em um incêndio e os maus-tratos e abuso sexual contra uma jovem, todos os três bolivianos, trouxe novamente à luz na Argentina o drama do trabalho escravo em confecções clandestinas, em uma trama na qual o Estado, a indústria têxtil, a moda e os consumidores são apontados como corresponsáveis.
Os dois irmãos, de 7 e 10 anos, morreram no dia 27 de abril, durante o incêndio em uma das muitas confecções clandestinas do bairro de Flores, em Buenos Aires, onde estavam alojados e trabalhavam seus pais. Alguns dias antes, Rosa Payro, de 21 anos, foi resgatada de outra fábrica têxtil da região metropolitana da capital argentina, depois de quase três anos sofrendo violações, tortura e privação da liberdade nas mãos de seus tios e exploradores.
Dois casos que escondem muitas cumplicidades, disse à IPS o ex-trabalhador de uma dessas confecções, Juan Vásquez, que agora integra o Simbiose Cultural, um coletivo de migrantes bolivianos que busca tornar visível a situação desumana nesses locais.
“Quando se fala de trabalho escravo se vincula com a ‘bolivianidade’ e não se associa com o consumo, com a classe operária daqui e nem com a conivência dos governos municipal e nacional. Somos retalhos, os excluídos, os exilados, apenas, dentro de um grande todo”, afirmou Vásquez.
A Fundação Alameda denuncia que existem cerca de três mil confecções clandestinas apenas em Buenos Aires e seus arredores, com 10 empregados, em média, e que exploram 30 mil trabalhadores, em sua maioria imigrantes bolivianos, mas também peruanos e migrantes internos argentinos.
“A moradia é o mesmo lugar onde são explorados e trabalham mais de 16 horas por dia. Estão permanentemente sujeitos ao poder do patrão”, afirmou à IPS Lucas Schaerer, porta-voz da Alameda, uma organização que luta contra o trabalho escravo e infantil e o tráfico de pessoas para exploração sexual. Além disso, acrescentou, “são obrigados a pagar os impostos, comem no mesmo lugar em condições desumanas. A alimentação, descontada do salário, é muito escassa, daí os altos níveis de tuberculose. Vivem em quartos como os de campos de concentração, com macas e banheiros compartilhados por 30, 50, 60 pessoas”.
Na Argentina, com 41 milhões de habitantes e 1,8 milhão de estrangeiros, a lei migratória garante a permanência, acesso ao trabalho, educação e saúde ao migrante sul-americano, mas muitos destes neo-escravos estão em condição ilegal. Cálculos de organizações indicam que 90% deles estão nos setores agropecuário e têxtil.
“Muitas vezes são traficados sem documentos ou identificação”, afirmou Schaerer sobre os donos das confecções. Alguns, inclusive, são familiares ou conhecidos. “Muitos não querem legalizar sua situação porque pensam que voltarão ao seu país”, disse à IPS o presidente da Associação Civil Federativa Boliviana, Alfredo Ayala.
Para Schaerer, estas fábricas clandestinas são o último elo da cadeia da indústria do vestuário. Quase 80% do setor “se nutre deles”, assegurou. “Tudo tem uma lógica: tráfico de pessoas, reduzi-las à servidão e colocá-las para produzir” para pequenas ou grandes marcas, feiras populares, grandes estilistas, butiques de moda, mercados de pirataria ou mesmo organismos oficiais, acrescentou.
Schaerer recordou que em 2006 uma auditoria interna do Ministério da Defesa comprovou que o exército “adquiria produtos de clandestinos”. Acrescentou que “é um delito que tem muitas responsabilidades”, com violação de leis nacionais e municipais. “Muitos chegam em ônibus ilegais. Entram desde a Bolívia (na fronteira norte do país) e percorrem quase metade da Argentina sem nenhum tipo de controle”, afirmou.
Também denunciou que “está muito ligado ao narcotráfico”, que utiliza essas confecções para legalização de dinheiro. Schaerer responsabiliza o governo nacional por não regulamentar a Lei de Prevenção e Sanção do Crime de Tráfico de Pessoas, e o de Buenos Aires por não fiscalizar e amparar as confecções denunciadas.
Por sua vez Ayala crítica a atuação de policiais, que em troca de subornos “garantem que não terão problemas”. Um exemplo é o que aconteceu com a fábrica onde morreram os dois meninos. Com policiais fazendo a segurança do local, ela foi incendiado pela segunda vez no dia 7 de maio, em uma ação aparentemente destinada a eliminar documentos e provas.
O prefeito de Buenos Aires, Mauricio Macri, nega e considera que tudo tem origem “na falta de trabalho, combinada com a imigração ilegal”. Afirmou que muitas vezes “não deixam” seus fiscais entrarem.
Em 10 anos, Alameda recebeu cerca de cinco mil denúncias que também incluem trabalho infantil, maus-tratos e abuso sexual, como no caso da jovem Payro. Mas, embora existam 110 marcas têxteis, algumas internacionais e famosas, denunciadas judicialmente, apenas uma foi condenada. Um sistema complexo, segundo Vásquez, porque “se alimenta necessariamente de migração”, uma população que está sem laços sociais e sem recursos.
Vásques acrescentou que “quando se chega aqui se está muito vulnerável por não conhecer o lugar… te dizem vai trabalhar aqui, vamos te dar comida, e aí começa o processo de naturalização. Alguém questiona porque te dão uma solução depois de passar tão mal em seu país”.
Ele mesmo chegou aos nove anos à Argentina com um irmão e sua mãe, que empenhou sua casa para cumprir o sonho de conseguir trabalho “Era vir para não voltar porque não tínhamos dinheiro. A última recordação que tenho da Bolívia é a fome. Lembro de seu desespero para conseguir dinheiro”, relatou Vásquez à IPS.
Após várias dificuldades na fronteira chegaram à fábrica em que seu pai já trabalhava, onde por três meses dormiram juntos em um catre. A isso somou-se a discriminação. Na escola era alvo de gozações por seu “sotaque muito acentuado” e por ser “morocho” (de pele morena). Aos 16 anos Vásquez começou a trabalhar em uma confecção e seus pais abriram uma própria.
“Está muito naturalizado e nem mesmo tem um senso cultural. Quando minha mãe abriu sua confecção não pensava: agora vou ser a exploradora e tirar-lhes dinheiro. Ela havia aprendido como era o sistema. Havia naturalizado o trabalhar por 16 horas, nessas condições”, afirmou Vásquez. Para ele, “é o capitalismo metido dentro de um tema como a imigração”.
Segundo Ayala, “muitas vezes os irmãos bolivianos não conhecem as leis e as infringem. Não sabem, por exemplo, que estão fazendo tráfico de pessoas. Às vezes trazem alguém da família, pensando que estão fazendo um favor, sem saber que cometem um crime”.
A Fundação Alameda propõe alternativas, como cooperativas têxteis em fabricas confiscadas ou recuperadas por seus trabalhadores. Também pede um selo obrigatório que garanta aos consumidores que o que compram não é fruto de trabalho escravo. O governamental Instituto Nacional de Tecnologia Industrial tentou um selo voluntário, mas só foi aceito por uma grande empresa de roupa. Ayala pede que o governo “divulgue as leis para que não se continue trazendo gente” e controle as grandes fabricas, porque “sem elas não existe estes trabalho escravo”.
Por sua vez o governo incentiva denúncias desses casos à Procuradoria de Tráfico e Exploração de pessoas. “Dizemos que em lugar de fechar a confecção temos que abri-la para ali encontrar a solução por parte do ator principal: o costureiro”, afirmou Vásquez. Envolverde/IPS