“Não queremos caridade. Queremos uma solução de longo prazo”, afirmaram numerosos refugiados palestinos que escaparam da Síria e retornaram ao território palestino de Gaza, em novembro de 2015.
Por Silvia Boarini, da IPS –
Gaza, Palestina, 20/5/2016 – Os sentimentos que os refugiados palestinos expressaram à IPS são os mesmos de muitas pessoas que estão em situação idêntica na Síria e nos diferentes acampamentos da região.
No contexto da pior crise de refugiados desde a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a Cúpula Humanitária Mundial (CHM), que acontecerá nos dias 23 e 24 deste mês em Istambul, na Turquia, oferecerá um espaço para debater soluções de longo prazo para as pessoas que fogem de conflitos prolongados, bem como a forma de proceder das diferentes partes e atores envolvidos.
Desde o começo da guerra civil na Síria, em 2011, o Oriente Médio superou lentamente a África subsaariana como epicentro da crise dos movimentos migratórios de milhões de pessoas que buscam um lugar seguro para viver.A Agência das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur) estima que hoje existam 60 milhões de pessoas deslocadas, uma em cada 122. Os especialistas coincidem em afirmar que a resposta tradicional a essas situações está longe de atender suas necessidades.
Em uma conferência sobre o assunto realizada em junho de 2015, no Instituto do Oriente Médio (MEI), com sede em Washington, numerosos atores humanitários e políticos concordaram que já não basta a Organização das Nações Unidas (ONU) armar um acampamento na fronteira mais próxima, enviar um grupo de profissionais para dar assistência e esperar que os países ricos paguem a conta.
“O modelo se desfez nos últimos anos”, escreveu o especialista Greg Myre. E aparecem novos padrões que exigem novos enfoques.Existe uma coincidência generalizada de que no prolongamento dos conflitos a capacidade e a vontade dos refugiados de chegarem a lugares distantes e a falta de fundos para o setor assistencial são os novos elementos que obrigam a repensar a tradicional estratégia humanitária.
Se no passado os fatores econômicos foram os maiores responsáveis pelo movimento de população, atualmente a guerra é, de longe, um dos principais. Só no Oriente Médio, aproximadamente 15 milhões de pessoas foram deslocadas por guerras em 2015. Até o dia 16 deste mês, esse número continuava aumentando.
Cerca de cinco milhões de pessoas fugiram da guerra civil da Síria, e outras 6,6 milhões são deslocadas internas. Segundo o Escritório de Coordenação de Assuntos Humanitários (Ocha), no Iêmen são 2,76 milhões de deslocados e no Iraque chegam a 3,4 milhões.
Essas pessoas se somam aos já existentes cinco milhões de palestinos registrados pela Agência das Nações Unidas para os Refugiados Palestinos (Unrwa) desde 1948 e 1967, aos libaneses que fugiram da guerra civil em seu país na década de 1980 e aos iraquianos que fugiram das guerras de 1991 e 2003. Muitas dessas pessoas viviam na Síria quando começou a guerra, o que as converteu em refugiadas pela segunda ou terceira vez.
Os refugiados nessa região competem por recursos limitados, levam ao limite a frágil e já escassa infraestrutura que tenta se recuperar dos conflitos prolongados, e são vistos como ameaça à segurança por países com dificuldades para manter uma paz precária, como Líbano, Jordânia e Turquia.
Como a capacidade da região para absorver refugiados é limitada, o desejo dessas pessoas de buscar um lugar seguro para viver o mais longe possível da guerra é outro novo elemento importante que distingue esta crise humanitária das demais.No caso especial da Síria, o prolongamento do conflito e o vazio deixado pela falta de soluções políticas em um futuro próximo forçam os refugiados a correrem o risco de se instalar em outro lugar com perspectivas de longo prazo.
As más condições de vida nos acampamentos e as limitadas ou mesmo nulas oportunidades educativas e econômicas nas cidades dessa região são fatores decisivos da mobilidade.As pessoas com condição de custear uma viagem até a Europa, Austrália ou para os Estados Unidos costumam ser profissionais cuja experiência será necessária em seus países de origem, mas que não estará disponível quando começar a reconstrução.
Os estudos mostram que, quanto mais longe uma pessoa se refugia,menos é provável que regresse ao seu país. O Acnur estima que o tempo que uma pessoa permanece deslocada chegou atualmente a 17 anos.
Por fim, mas certamente não menos importante, a crise atual se caracteriza por uma falta endêmica de fundos, que torna impossível para o setor humanitário e as agências da ONU atender as necessidades básicas de milhões de pessoas.Até este mês, faltavam US$ 3,5 bilhões, dos US$ 4,5 bilhões solicitados somente para a Resposta Regional à Crise de Refugiados da Síria.
Os especialistas coincidem em que custa dez vezes menos dar atenção a um refugiado em sua região de origem do que no Ocidente, e, no entanto, os doadores são lentos para reunir o dinheiro necessário para melhorar a vida de milhões de pessoas que fogem das guerras.
Em 2015, a assistência oficial ao desenvolvimento (ODA) dos países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômicos (OCDE) alcançou um máximo de US$ 131,6 bilhões. Mesmo assim, a quantia representou 0,3% do produto interno bruto, bem abaixo do compromisso de contribuir com 0,7% de seu PIB.
A crise de fundos e a incapacidade de atender as necessidades dos refugiados, quanto menos satisfazê-las, levou o setor humanitário a um exame de consciência que derivou em pedidos de reforma, especialmente no contexto da ONU, para racionalizar o trabalho, diminuir os gastos gerais, melhorar a coordenação com organizações locais e buscar doadores alternativos aos governos.
Sobre este último ponto, o administrador adjunto da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid), Thomas Staal, explicou na conferência do MEI em junho: “nos Estados Unidos gastamos mais dinheiro para comprar Coca-Cola do que todo o dinheiro que vai para a Síria”. Além de destacar a necessidade de o setor privado assumir seu papel em tempos de crise, sua fala também pode ser entendida como uma necessidade de reavaliarmos nossas prioridades e nossos valores como sociedade.
A morte de pessoas no Mar Mediterrâneo não surge do nada, é o resultado direto da incapacidade da comunidade internacional para atender as necessidades dos refugiados do mundo, para descomprimir conflitos e para criar oportunidades duradouras para melhorar.
A imensa pressão colocada nas populações de acolhida na Turquia, no Líbano e na Jordânia, que receberam, respectivamente, 2,7 milhões, 1,05 milhão e 700 mil refugiados sírios, realça a incapacidade do Ocidente de ser sensível ao pequeno número de refugiados que chegam ao seu litoral.
Como os sistemas de saúde e educação dos países assolados pela guerra estão em decadência, é indispensável a implantação de soluções de longo prazo antes que a situação se torne caótica, afirmam especialistas.A Cúpula Humanitária Mundial poderá ser a plataforma onde serão dados os primeiros passos nessa direção. Envolverde/IPS
*Este artigo integra uma série elaborada pela IPS sobre a Cúpula Humanitária Mundial, que acontecerá em Istambul, na Turquia, nos dias 23 e 24 deste mês.