“As pessoas se aferram a uma posição, esquecendo seus próprios interesses e se sujeitando a uma discussão emocional, irracional”, observou à IPS a socióloga Bárbara Mourão.
Por Mario Osava, da IPS –
Rio de Janeiro, Brasil, 18/4/2016 – Uma pediatra que deixa de atender um bebê por discrepâncias políticas com a mãe, ciclistas agredidos por usarem bicicletas vermelhas, celebridades hostilizadas por seu apoio ao governo. Esses são casos de violência que proliferaram no Brasil ultimamente. A agressividade nas relações interpessoais, desatada pelo processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, nega o mito dos brasileiros como personalidades tolerantes que priorizam a alegria e a afetividade.
Acumulam-se relatos de brigas familiares, amizades rompidas, hostilidades no ambiente privado que acompanham as manifestações de rua pró e contra o governo, que se tornaram maciças e frequentes em todo o país desde março, com enfrentamentos marginais, até agora sem vítimas fatais. Mas um longo muro metálico dividindo a Esplanada dos Ministérios em Brasília, para evitar enfrentamentos entre ativistas dos dois lados, alerta para o risco de tragédias ao se aproximar o desenlace da controvertida luta pelo poder.
Antes da sessão do dia 17, na Câmara dos Deputados para decidir se o processo de impeachment deveria ser enviado ao Senado para julgamento, a professora de antropologia na Universidade de Brasília, Lia Zanotta Machado, afirmou que “nenhum dos lados tem argumentos políticos sustentáveis, ambos são vulneráveis a críticas e recorrem à agressividade porque a única forma de se defender é atacar o adversário, buscando destruí-lo”.
“Predominam os adjetivos negativos e as acusações personalizadas, desqualificadoras”, diante da fragilidade das políticas que as forças em confrontação poderiam apresentar como suas bandeiras, acrescentou a professora. O movimento que pretende derrubar a presidente reclama o combate sem trégua à corrupção, tentando identificar como fonte desse mal os governos do Partido dos Trabalhadores (PT), iniciados em 2003 com Luiz Inácio Lula da Silva e seguido por Dilma desde 2011.
Mas os herdeiros do poder Executivo, em caso de impeachment da presidente, estão todos envolvidos no escândalo de corrupção que agravou a crise política e econômica do Brasil desde o ano passado, sobre desvio de milhares de milhões de dólares da Petrobras. O vice-presidente, Michel Temer, que já se apresenta como novo chefe de um governo de união nacional, aparece como receptor de fundos de grandes construtoras nos depoimentos de vários empresários processados, que decidiram colaborar com a justiça para abrandar suas penas.
Em pior situação está o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, acusado de ocultar contas em bancos suíços onde teria depositado milhões de dólares ilegais. Ele seria o vice de Temer, se a presidente Dilma cair. Mas pode ser julgado a qualquer momento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e também pela Comissão de Ética da Câmara, com o risco de ficar inabilitado politicamente por oito anos. O terceiro na cadeia de sucessão presidencial seria o presidente do Senado, Renan Calheiros, também denunciado como beneficiário da corrupção.
Os três são dirigentes da maior força legislativa, o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), que deixou a coalizão governamental em 29 de março, como um passo para ocupar o centro do poder. Corrupto é um estigma forte, mas a desclassificação do oponente se faz com muitas acusações que fomentam o ódio que penetrou as relações pessoais e familiares, pontuou Zanotta.
Dilma é acusada de ser “inábil, ineficiente e irresponsável” e seus partidários de “petralhas”, combinação de PT com os irmãos Metralha, conhecidos ladrões nas histórias de Walt Disney. A resposta é rotular os opositores de “golpistas e antidemocráticos”, além do apelido de “coxinha”, para identificar pessoas conservadoras.
Dilma se defende destacando que não é afetada por nenhuma acusação de corrupção, ao contrário dos líderes “traidores”. Sua inabilidade foi requerida por três juristas, acusando-a de fraudes fiscais, por ter ordenado gastos sem autorização parlamentar, violando o orçamento oficial de 2015.
Os blocos em confronto “são muito heterogêneos, contraditórios”, fatalmente se dividiriam ao definir uma estratégia, um programa, por isso “buscam uma unificação ilusória, construindo um inimigo comum”, apontou Benilton Bezerra Júnior, pesquisador de Medicina Social na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Manter unidas as forças exige também uma “simplificação que evita numerosos conflitos não assumidos explicitamente”, dentro dos grupos, acrescentou.
O bloco opositor se assenhorou da bandeira da anticorrupção, aproveitando os erros do PT, mas a corrupção é “um peão no jogo do xadrez”, pontuou Bezerra à IPS. Segundo este pesquisador, “apesar da pluralidade de posições nos dois lados, há centros de gravidade que identificam seus diferentes interesses em jogo”, conservadores entre os que querem o afastamento da presidente contra a defesa dos avanços sociais, como mais escolas e menos desigualdade, conquistados durante os governos do PT.
Os brasileiros praticam uma “autoavaliação positiva de que são afáveis, tolerantes e simpáticos”, e de fato “são reais os sinais de afeto, boa acolhida aos estrangeiros, de ausência de ódio racial embora haja racismo”, mas se trata de “uma sociedade violenta, de estruturas hierárquicas nada democráticas”, afirmou Bezerra.
A cordialidade atribuída aos brasileiros, que significa subordinar a razão ao afeto, compreende a informalidade e “a dificuldade de lidar com o conflito de forma pública e ordenada. Inclusive no meio universitário é difícil discutir opiniões discordantes, mesmo teóricas”, enfatizou Bezerra, que é doutor em saúde coletiva e identidades culturais. “Se personaliza tudo, se entende a crítica como feita às pessoas e não às ideias”, concluiu.
É assim que a disputa política se converte em conflito pessoal, realçou Machado. “As pessoas se aferram a uma posição, esquecendo seus próprios interesses e se sujeitando a uma discussão emocional, irracional”, observou à IPS a socióloga Bárbara Mourão, comparando seus estudos sobre mediação de conflitos no âmbito da justiça com a disputa política vivida pelos brasileiros.
“A dificuldade do mediador é buscar consenso, enquanto os lados só querem o adversário para reforçar suas posições, sua necessidade de certeza, sem admitir que outras visões possam ter algo não equivocado”, pontuou a pesquisadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, da Universidade Cândido Mendes. Sonia Correa, coordenadora do Observatório de Sexualidade e Política, destacou dois fatores que causam ou agravam essa intolerância política. A violência social é tradicional no Brasil, que concentra 10% dos assassinatos do mundo, segundo a entidade pública brasileira Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea).
“O mito da cordialidade serviu para ocultar essa violência, que não se via antes na política devido ao controle das elites, mas se evidenciou com a democratização e a entrada do povo na vida política”, indicou Correa à IPS. “Outro fator a considerar é a intensificação do dogmatismo religioso pela expansão das novas igrejas evangélicas, contrastando com a moderação com que a Igreja Católica regulava a sociedade no passado, com raros momentos de radicalização”, comparou.
Os novos evangélicos “insuflaram concepções binárias, de bom e mau, criando condições para a direita sair do armário, a suspensão do diálogo e, por exemplo, do debate sobre aborto”, lamentou Correa. “A sociedade brasileira não desenvolveu práticas de deliberação democrática, incluindo visões diferentes, o PT também é binário e no poder demoliu alternativas à esquerda”, criticou. Envolverde/IPS