Internacional

Definição de violação não muda com certidão de casamento

Casal realiza ritual em uma boda indiana. Segundo especialistas, milhares de mulheres sofrem violação marital, que ainda não é crime na Índia. Foto: Naveen Kadam/CC-BY-2.0
Casal realiza ritual em uma boda indiana. Segundo especialistas, milhares de mulheres sofrem violação marital, que ainda não é crime na Índia. Foto: Naveen Kadam/CC-BY-2.0

Por  Neeta Lal, da IPS – 

Nova Délhi, Índia, 18/5/2015 – “Meu marido me violou brutalmente várias vezes”, contou Anna Marie Lopes, de 28 anos. “Me manteve sob vigilância em sua casa de Dubai enquanto eu sofria depressão e má nutrição severa. Quando tentei fugir desse inferno ele confiscou meu passaporte, me deixou sem dinheiro e me batia”, acrescentou a indiana.

Após seis anos de tortura, Lopes conseguiu pegar um avião que a tirou dos Emirados Árabes Unidos, onde residia com o marido, e chegou a Nova Délhi, em 2012. “A vida é dura quando se precisa começar do zero depois de uma experiência traumática e sem apoio, nem mesmo dos meus pais. Mas não tinha outra opção”, disse à IPS.

Porém, milhares de mulheres indianas não têm sua relativa sorte e continuam sofrendo violações maritais sem possibilidade de escapatória, o que as deixa totalmente devastadas. O Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) estima que mais de 40% das mulheres casadas na Índia entre 15 e 49 anos de idade apanham, sofrem violação ou relações sexuais forçadas por seus maridos.

Um estudo do Centro Internacional de Pesquisa sobre Mulheres, com sede em Washington, apontou em 2011 que um em cada cinco homens indianos reconheceu obrigar sua esposa a manter relações sexuais, e que apenas uma em cada quatro mulheres que sofreram abusos buscou ajuda; as mulheres buscam muito menos ajuda por violência sexual do que física. Após uma violação, costumam recorrer a familiares, mais do que à policia.

Devido a essa realidade nefasta e arraigada, a reticência do governo em penalizar a violação marital, argumentando que o matrimonio é “sagrado”, causou acalorado debate na Índia.

O ministro de Assuntos Internos, Haribhai Parathibhai Chaudhary, disse na Rajya Sabha (câmara baixa do parlamento) que o conceito de violação marital, como se entende em nível internacional, não podia “ser aplicado adequadamente no contexto indiano devido a vários fatores, como educação, analfabetismo, pobreza, crenças religiosas e a mentalidade da sociedade”.

“O governo está dizendo que é aceitável os homens violarem suas esposas ou acredita que o casamento é uma licença para a violação sexual com a desculpa de que isso constitui uma defesa dos valores e da cultura indiana?”, perguntou Amitabh Kumar, do Centro de Investigação Social, com sede em Nova Délhi. “Uma violação é uma violação e atenta contra os direitos fundamentais da vítima”, afirmou à IPS.

A violação marital, definida como a relação sexual forçada pelo marido e sem o consentimento de sua esposa, o que deriva no abuso físico e sexual desta última, é regida pelo artigo 375 do Código Penal da Índia. A lei afirma que a relação sexual forçada por um homem com sua mulher, desde que esta não seja menor de 15 anos, não constitui violação. A Lei de Violência Doméstica, aprovada em 2005, reconhece o abuso sexual no âmbito do matrimônio, mas os especialistas legais afirmam que só oferece um recurso civil e que não permite prender o cônjuge que abusou.

Após a violação grupal de uma estudante de medicina em Nova Délhi em dezembro de 2012 o mal-estar da população levou a então governante Aliança Progressista Unida (APU) a criar uma comissão encarregada de reformar a legislação sobre violação. A Comissão Verma, de três membros, recomendou que a violência sexual entre cônjuges seja considerada violação e delito penal.

Anna Marie Lopes, de 28 anos, é uma sobrevivente de violência doméstica e violação marital que agora trabalha em uma organização não governamental de Nova Délhi. Foto: Neeta Lal/IPS
Anna Marie Lopes, de 28 anos, é uma sobrevivente de violência doméstica e violação marital que agora trabalha em uma organização não governamental de Nova Délhi. Foto: Neeta Lal/IPS

Porém, o governo, então nas mãos do Partido do Congresso, ignorou a sugestão argumentando que a iniciativa destruiria a instituição do casamento na Índia. O governo acabou aprovando uma lei contra a agressão sexual, que não inclui a violação marital. Segundo especialistas, o atual governo, encabeçado por Bharatiya Janata Party (Partido Popular Indiano), segue uma linha conservadora semelhante à de seu antecessor.

Em janeiro de 2015 o Supremo Tribunal de Justiça rejeitou o pedido de uma vítima para declarar a violação marital um delito penal, com o argumento de que a legislação nacional não podia ser ajustada a uma pessoa. O experiente advogado penal Ram Jethmalani e o ex-juiz do Tribunal Supremo de Justiça K T Thomas apóiam a perspectiva do governo, mas sua posição não é unânime entre os especialistas.

“A instituição matrimonial é uma parte integral da cultura indiana. Mas isso não nos impediu de sancionar a lei contra o dote nem a de violência doméstica”, lembrou à IPS o advogado especialista em direitos humanos Soumya Bhaumik. “Se é possível processar o marido por assassinar sua esposa, por que não se pode fazer o mesmo no caso de violação? Todo o conceito de consentimento ou a definição de violação não mudam com uma certidão de casamento”, acrescentou.

Bhaumik também se referiu aos casos documentados de maridos que forçam suas parceiras, o que gera não só um trauma físico, mas também mental e emocional. “A atual Lei de Violação Doméstica trata esses episódios como casos civis. Isto é, o cônjuge em falta recebe uma ordem de restrição ou a parte prejudicada recebe uma ordem de proteção. Mas não existe uma disposição que coloque o culpado atrás das grades”, acrescentou.

O Comitê para a Eliminação da Discriminação Contra a Mulher, da Organização das Nações Unidas (ONU), recomendou que a Índia penalize o fato de um homem violentar sua esposa. A violação marcial já é crime nos Estados Unidos, na Grã-Bretanha, África do Sul, no Canadá, na maioria dos países europeus, na Malásia, Turquia e Bolívia.

Essa situação, somada à falta de independência econômica atuam como barreira para que as mulheres denunciem um caso de violência sexual marital. “A maioria das mulheres não denuncia esse tipo de violação por temerem que a prisão do arrimo da família condene os filhos”, explicou à IPS Winnie Singh, diretora-executiva da Maitri, uma organização que trabalha reabilitando mulheres marginalizadas. “Segundo nossa investigação, as condenações são menos de um por cento dos casos denunciados”, ressaltou.

Singh também criticou o processo legal que coloca na mulher a responsabilidade de provar que houve violação, algo que muito poucas estão dispostas a assumir devido à baixa proporção de condenações. Somente são denunciados seis em cada 100 casos de violência sexual cometidos por homens que não maridos das vítimas, segundo um informe de Aashish Gupta, do Instituto de Pesquisa de Economia Compreensiva.

Nesse contexto, afirmou Singh, a sensibilização e a educação são vitais para gerar consciência e garantir justiça para as vítimas. Envolverde/IPS