Internacional

Dúvidas e contradições sobre o destino excepcional dos Estados Unidos

O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama e a chanceler alemã, Angela Merkel, na Casa Branca. Foto: BPA Germany Info
O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama e a chanceler alemã, Angela Merkel, na Casa Branca. Foto: BPA Germany Info

 

Roma, Itália, março/2015 – Durante longo tempo, os norte-americanos acreditaram firmemente que seu país tinha um destino excepcional, e mantêm essa convicção na atualidade, apesar de seu sistema político ter se tornado totalmente disfuncional.

Os três pilares da democracia norte-americana – os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário – já não se dirigem a palavra, por isso o diálogo ou a possibilidade de realizar uma política bipartidária praticamente desapareceu.

Nesse contexto, com vistas às eleições presidenciais de 2016, o presidente Barack Obama está sendo cada vez mais pressionado para que atue como um homem forte.

Essa é a única explicação razoável sobre porque, inesperadamente, Obama declarou que a Venezuela é uma ameaça às segurança dos Estados Unidos, poucos meses depois de iniciar o processo de normalização das relações com Cuba, velha inimiga de Washington e aliada da Venezuela.

O presidente venezuelano, Nicolás Maduro, está muito satisfeito porque suas denúncias de um complô dos Estados Unidos com a oposição venezuelana para tirá-lo do cargo agora são oficialmente confirmadas por Obama.

O problema é que, às costas de Obama, os senadores republicanos estão adotando posições sem precedentes, tais como advertir o líder do Irã, aiatolá Ali Khamenei, que qualquer acordo assinado com Obama será válido somente durante sua administração.

Essa mensagem deve ter deixado Khamenei muito descontente, bem como a linha dura do Irã, porque sempre disse que não se pode confiar nos Estados Unidos e que as negociações nucleares em curso não têm sentido.

Isso parece uma extensão do conceito do destino excepcional dos Estados Unidos, cuja política externa também pode ser excepcional, não sujeita à lógica e às regras.

Do outro lado do Atlântico, o que é sem dúvida excepcional é que – enquanto a Europa quase sempre seguiu a política externa norte-ameircana, inclusive quando vai contra seus interesses, como é o caso do enfrentamento com a Rússia pela Ucrânia –, a Grã-Bretanha, que tem uma relação especial com os Estados Unidos, está se encaminhando para uma ação divergente.

Por meio de seu ministro da Fazenda, George Osborne, Londres anunciou que pretende aderir à iniciativa chinesa para a criação de um Banco Asiático de Investimentos para Infraestruturas (BAII), no qual Pequim está investindo US$ 50 bilhões.

Isso provocou a ira dos Estados Unidos porque o BAII é considerado uma alternativa às instituições financeiras com sede em Washington, o Banco Mundial e o Banco Asiático de Desenvolvimento, nos quais Estados Unidos (e Japão) têm fortes interesses.

O primeiro-ministro britânico, David Cameron, respondeu que seu país se une ao BAII porque “acreditamos que é de interesse nacional para a Grã-Bretanha”.

Pouco depois do anúncio de Cameron, seguiram-se os de França, Alemanha e Itália, enquanto a Austrália também se unirá e a Coreia do Sul terá que fazê-lo. Isso deixará os Estados Unidos isolados e emergirá uma nova dimensão “excepcional”: o poder econômico (China) é mais atraente do que o poderio militar (Estados Unidos).

Naturalmente, Cameron está atuando para agradar o eleitorado, que é muito consciente de seus interesses financeiros, inclusive quando não coincidem com os interesses dos Estados Unidos.

Afinal, a participação da China na produção manufatureira mundial, que foi de 3% em 1990, aumentou para quase 25% no ano passado.

Pior ainda, Cameron também decidiu cortar o gasto com defesa. Atualmente o gasto militar de Londres é de 2% do produto interno bruto – objetivo que Washington espera que seja observado por todos os membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) – e Cameron só o manterá até maio, ao terminar a atual legislatura.

Segundo Washington, o presidente russo, Vladimir Putin, poderia considerar isso como um sinal de fraqueza. Por essa ótica, é preciso submeter Putin a uma crescente pressão, fazendo com que veja que as represálias por sua política em relação à Ucrânia se intensificarão até que ele retroceda.

Essa escalada está indo em uma direção que as mentes mais esclarecidas deveriam examinar em uma perspectiva de longo prazo.

Os membros da Otan, uma instituição que precisa de conflitos para justificar sua existência agora que a União Soviética já não existe, estariam dispostos a entrar em uma guerra apenas para mantê-la viva?

Os cenários são os que costumam preceder uma guerra.

O ministro da Defesa britânico, Michael Fallon, declarou que a Rússia é “uma ameaça tão grande para a Europa quanto o Estado Islâmico”. Tropas da Otan estão se concentrando nos países bálticos para combater uma hipotética invasão russa.

A maioria republicana do Congresso norte-americano está pedindo abertamente o envio maciço de armas pesadas ao exército ucraniano. Centenas de soldados norte-americanos foram destacados para a Ucrânia, a fim de reforçar o regime de Kiev contra os rebeldes apoiados por Moscou. A Grã-Bretanha enviou 75 assessores militares.

Entretanto, segundo o The New York Times, o governo polonês está apoiando a criação e capacitação de milícias e prevê proporcionar treinamento militar aos muitos poloneses que estão cada vez mais preocupados com a possibilidade de “o gigante russo não se saciar com a Ucrânia e uma vez mais voltar seus olhos para o Ocidente”.

O mesmo está ocorrendo nos países bálticos, todos eles com uma presença russa considerável e temerosos de que Putin possa invadi-los a qualquer momento.

Meios de comunicação de todo o mundo participam de um frenesi para denegrir pessoalmente Putin, criando uma imagem do presidente russo e do conflito na Ucrânia que possa servir de desculpa para o expansionismo militar da Otan.

É difícil olhar Putin com simpatia, mas esse enfrentamento fez o povo russo apoiar seu líder em um nível sem precedentes, que agora se situa em torno dos 80%.

Seria um erro subestimar o papel que pode desempenhar a humilhação na história.

Como é bem sabido, o poder de Hitler nasceu das frustrações pelas fortes sanções que os alemães tiveram que pagar aos vencedores da Primeira Guerra Mundial.

A mesma sensação de humilhação fez com que a guerra do presidente Slobodan Milosevic contra a Otan fosse tão popular entre a população sérvia.

É na humilhação dos árabes, que foram divididos entre os vencedores da Primeira Guerra Mundial, que encontramos as raízes do Califado, ou do grupo extremista Estado Islâmico, que afirma que os árabes finalmente estão por recuperar sua dignidade e identidade.

É também a humilhação pela imposição da austeridade o que agora está criando um forte sentimento antialemão na Grécia.

Alguém já considerou quem se encarregará da Rússia se Putin se for? Certamente não será a débil oposição atual. E o que significaria assumir a responsabilidade de um Estado tão débil como a Ucrânia?

O Fundo Monetário Internacional aprovou um fundo de ajuda de US$ 17,5 bilhões para a Ucrânia, mas advertiu que o resgate do país “está exposto a riscos excepcionais, especialmente os derivados do conflito no Leste” desse país.

Na realidade, a Ucrânia precisa de ajuda urgente para tapar um fosso de pelo menos US$ 40 bilhões. Os economistas coincidem em que o país não conta com uma economia saudável. São necessários muitos anos de ajuda constante para chegar a algum equilíbrio econômico e isso sem que haja guerra.

A Europa se encontra próxima da recessão e ao que parece é incapaz inclusive de resolver os problemas da pequena Grécia. Porém, empenha-se em apoiar Kiev contra os rebeldes apoiados pela Rússia.

Roberto Savio. Foto: IPS
Roberto Savio. Foto: IPS

A Otan pode apoiar os soldados ucranianos até seu último homem, mas é impossível vencer a Rússia. Então, o Ocidente vai intervir ou retroceder e perder seu prestígio, depois de muitas mortes e destruições incalculáveis?

Generalizou-se a opinião de que as sanções deveriam fazer a Rússia morrer de fome, agora que reduziu sua renda com o petróleo. O que acontecerá se Putin, apoiado pelo povo russo, não der marcha à ré?

Estão os europeus dispostos a marchar para a guerra, a fim de agradar o Congresso dos Estados Unidos, dominado pelo Partido Republicano? Envolverde/IPS

* Roberto Savio é fundador da agência IPS e editor do boletim Other News.