A crise global dos preços dos alimentos em 2008 coincidiu com revoltas em mais de 40 países e com a queda de vários governos, como os do Egito e da Líbia, ressaltando o vínculo entre segurança alimentar e instabilidade política.
Por Enrique Yeves*
Roma, Itália, 12/5/2016 – Desesperado, frustrado e sem perspectiva de futuro, no dia 17 de dezembro de 2010 o tunisiano Mohamed Bouazizi jogou gasolina em seu corpo e ateou fogo. Assim começou a revolta popular que derrubaria em seu país a ditadura de Zine el Abidine Ben Ali, que estava no poder desde 1987, criando um efeito dominó em outros países do Oriente Próximo e do norte da África.
Esse fato se deu na pequena cidade de Sidi Bouzid, mas poderia ter sido em qualquer outro lugar do mundo golpeado pelo alto preço de produtos tão básicos como o pão. Paradoxalmente, Mohamed era vendedor de frutas e sonhava em comprar uma caminhonete para ampliar seu negócio.
A crise global dos preços dos alimentos em 2008 coincidiu com revoltas em mais de 40 países e com a queda de vários governos, como os do Egito e da Líbia, ressaltando o vínculo entre segurança alimentar e instabilidade política. Os protestos na Tunísia e em outros países foram inicialmente manifestações contra os altos preços dos alimentos.
Não foi a única causa, mas foi o detonador de uma indignação pública com raízes mais profundas, mas com um denominador comum.
Em 2011, uma alta semelhante dos preços dos alimentos voltou a provocar novos conflitos internos e exacerbar os existentes em numerosos países, tal como se pode ver claramente no gráfico que acompanha este artigo: quando a curva dos preços de produtos alimentícios se eleva a picos extremos, o impacto na instabilidade social e política é bem evidente.
A falta de alimentos ou, para ser mais preciso no argumento, da capacidade de adquiri-los – isto é, a pobreza – é uma das ameaças à segurança e à vida das pessoas que mais rapidamente acende o pavio do enfrentamento e mais alonga os conflitos.
Não pode haver paz sem segurança alimentar, nem segurança alimentar sem paz. São dois conceitos que se reforçam mutuamente.
Quando foi criada a FAO, em 1945, o mundo ressurgiu da Segunda Guerra Mundial e seus fundadores sabiam que essa organização deveria desempenhar um papel vital na busca pela paz. Por isso, já então, assinalaram no preâmbulo da Constituição que “A Organização das Nações Unidas para Alimentação e a Agricultura (FAO) nasce da necessidade de paz e da necessidade de livrar o mundo da miséria. Ambas são interdependentes. Eliminar a miséria é essencial para uma paz duradoura”.
Setenta anos depois da criação da FAO, a comunidade internacional reforça essa ideia com a adoção da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, baseada na premissa de que não pode haver desenvolvimento sustentável sem paz, nem paz sem desenvolvimento sustentável.
O vínculo entre alimentação e paz também foi a base da concessão do Prêmio Nobel da Paz de 1949 a Lord Boyd Orr, o primeiro diretor-geral da FAO. Ao aceitá-lo, afirmou com clarividência: “A fome está no centro de todos os problemas do mundo. A menos que as pessoas tenham o que comer, os tratados significarão nada”. Por isso a segurança alimentar é um pré-requisito para a paz e a segurança mundial e a fome deve ser considerada uma questão de segurança mundial.
Mais ainda em um mundo globalizado, onde tudo o que acontece em um lugar do planeta afeta o restante. E também por isso as medidas de estabilização de preços dos alimentos e das redes de proteção social são instrumentos fundamentais para a prevenção de conflitos violentos.
Por essa razão, o diretor-geral da FAO, José Graziano da Silva, lançou um claro sinal à comunidade internacional sobre a imperiosa necessidade de se enfrentar o tema da insegurança alimentar no sentido mais amplo do termo, ao se dirigir no mês passado ao Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) e destacar a relação de interdependência entre fome e conflito, bem como de sua influência na desestabilização das sociedades e no agravamento a instabilidade política.Como consequência dessa intervenção, o Conselho de Segurança solicitou à FAO que mantenha seus membros regularmente informados da situação alimentar nos países mais críticos.
Por tudo isso, erradicar a fome é, não só uma obrigação moral, mas uma necessidade crucial para garantir um futuro para todos. Melhorar a segurança alimentar pode ajudar a construir uma paz sustentável, e inclusive prevenir possíveis conflitos. Sabemos que as ações para promover a segurança alimentar podem ajudar a prevenir crises, mitigar seu impacto e promover a recuperação posterior. E está claro que a prevenção exige abordar as causas mais profundas dos conflitos, entre elas a fome e a insegurança alimentar.
Os conflitos são um fator crucial nas crises de segurança alimentar prolongadas e o círculo vicioso se repete uma e outra vez. Durante os mesmos, há três vezes mais probabilidades de sofrer fome do que no resto do mundo em desenvolvimento, enquanto os países com níveis mais altos de insegurança alimentar também são os mais afetados pelos conflitos. Assim confirmam casos que vão da Síria ao Iêmen, do Sudão do Sul à Somália.
O pós-conflito de Angola e Nicarágua, a situação de Ruanda depois do genocídio e a de Timor Leste posterior à independência, são outros casos que nos mostram que a paz e a segurança alimentar se reforçam mutuamente. Do contrário, a situação desemboca em um recrudescimento da violência.
O fracasso para impulsionar a segurança alimentar pode pôr em risco os processos de estabilização, um risco que enfrentam atualmente o Iêmen e a República Centro-Africana, onde metade da população sofre insegurança alimentar.
Esse foi precisamente o tema central de uma reunião realizada no final de abril, entre o diretor-geral da FAO e o novo presidente da República Centro-Africana, Faustin-Archange Touadera, que pediu à FAO apoio para ter êxito na estratégia de desarmamento e reinserção dos grupos armados do país, redobrando os esforços no setor agrícola, para que a população possa satisfazer suas necessidades básicas.
Promover o desenvolvimento rural também pode facilitar os esforços de construção da paz. Um exemplo muito concreto e atual é o trabalho conjunto da FAO com o governo da Colômbia, para implantar projetos de execução rápida que melhorem a segurança alimentar e o desenvolvimento rural, em um esforço no sentido de consolidar o acordo de paz, que, previsivelmente, logo será alcançado.
Os esforços internacionais em favor da paz serão mais efetivos se incluírem medidas para impulsionar a resiliência das famílias e comunidades rurais, já que são elas e seus meios de vida os que sofrem a maior parte dos danos nos conflitos. E, para tudo isso, a fome, no centro de tantos conflitos, deve ser considerada uma questão de segurança mundial. Envolverde/IPS
* Enrique Yeves é jornalista, especialista em temas de política internacional e atualmente é diretor de Comunicação da FAO.