Por Fabiana Frayssinet, da IPS –
Buenos Aires, Argentina, 8/6/2015- Após a excepcional resposta à convocação para se manifestar contra os feminicídios na Argentina, seus organizadores começam a delinear os passos para tornar realidade o clamor de “Ni Una Menos” (nem mais uma mulher morta por ser mulher), aproveitando a força das ruas para ditar agendas políticas a favor das mulheres.
“Essa mobilização teve propostas concretas”, destacou Fabiana Túñez, uma das fundadoras da Casa do Encontro, que participou das manifestações que tomaram as ruas de Buenos Aires e outras cidades, no dia 3 deste mês, pedindo o fim das mortes por razões de gênero. A ativista disse à IPS que “se espera que todos os funcionários, funcionárias e pré-candidatos às eleições que tiraram fotos agora recolham a força da das ruas e a incorpore em suas agendas políticas para aprofundar o trabalho contra a violência que atinge as mulheres”.
A convocação para a mobilização surgiu espontaneamente nas redes sociais, a partir do lema “Ni Una Menos”, lançada por um grupo de jornalistas, artistas e ativistas. A resposta em Buenos Aires, em frente ao Congresso, e em outras cidades ultrapassou os limites dos parques, das avenidas e das ruas vizinhas, sob esse lema que conseguiu, em um país politicamente muito polarizado, unir antagônicos setores sociais, partidários, sindicais, estudantis e até conservadores religiosos.
“Basta de feminicídios”, “deixemos de criar princesas indefesas e machinhos violentos”, “se nos querem, não nos espanquem, não nos violem, não nos matem”, podia-se ler em alguns cartazes improvisados por 200 mil manifestantes, somente na capital, segundo fontes mais conservadoras. A maioria era de mulheres, mas também havia muitos homens e famílias.
“A sociedade está farta de ouvir sobre feminicídios. Isso foi um caldo de cultivo propício que chegou à ebulição”, destacou Túñez. Na Argentina, segundo os casos colhidos da imprensa por sua organização não governamental, nos últimos sete anos foram assassinadas 1.808 mulheres por razões de gênero, o que deixou milhares de órfãos, alguns obrigados a conviver com os assassinos.
Segundo os dados apresentados durante o protesto, com o destaque de que são parciais, em 2008 havia um feminicídio a cada 40 horas neste país de 43 milhões de pessoas, e em 2014 um a cada 30 horas. Uma das demandas é que existam estatísticas oficiais sobre os feminicídios e que também seja garantido o acesso a justiça, proteção, além de mais abrigos para as vítimas de homens violentos.
“Pediremos reuniões com pré-candidatos (às eleições gerais de outubro) para desenvolver mais propostas e tomara que nos ouçam, porque continuaremos falando, e ficou bem claro nas manifestações que se trata de um tema transversal”, ressaltou Túñez. “Todos os partidos têm que incorporar em uma proposta concreta o que a sociedade já transformou em uma agenda concreta”, acrescentou.
O documento, lido durante as concentrações por artistas como a cartunista Maitena (Burundarena), solicita “a implantação, orçamento e adequado monitoramento do Plano Nacional de Ação para a Prevenção, Assistência e Erradicação da Violência Contra as Mulheres, que está na Lei 26.485 de Proteção Integral das Mulheres”, mas que falta ser regulamentada.
“Pedimos que sejam cumpridas as leis, que não haja juízes machistas, que se lute para que ninguém tenha o direito de tocar ou violar minha filha por ela sair de minissaia”, enfatizou à IPS Soraima Torres, uma das manifestantes em Buenos Aires. “É preciso ensinar aos homens a não machucar, não violar, não bater, não matar e a pedir a igualdade de gênero. Não sou menos do que um homem”, acrescentou sua filha, Mariela, segurando nos braços sua pequena filha.
Os organizadores também querem que seja garantida a educação sexual integral, impulsionada pelo governo de Cristina Fernández, mas que ainda não foi totalmente implantada, por pressão de grupos conservadores. Uma educação que segundo outra manifestante, Evelyn Garazo, de 18 anos, também tem que mudar o modelo de amor das próprias mulheres. “Algumas mulheres têm noivos violentos verbalmente, ou muito controladores, que não as deixam sair com amigas. E elas consideram normal porque quem está pedindo é o rapaz que supostamente a ama”, acrescentou.
Como disse Maitena, os feminicídios têm por trás parâmetros culturais que “tendem a pensar a mulher como objeto de consumo e descarte”. Assim disseram se sentir nas ruas duas estudantes que pela primeira vez participavam de uma manifestação. “Não tem que existir violência nem da menor forma, ou que gritem com você na rua, até que a violem ou matem”, disse uma delas, Candela Rivero.
“Considera-se como fato que o homem é superior à mulher e que quando saímos à rua e um homem gritar, te passar a mão, fizer qualquer coisa… e você tem que aguentar porque se disser algo não sabe se ele vai te agarrar e fazer algo. Você tem que se calar e continuar caminhando com medo”, protestou Rivero,
Muitos homens que participaram do protesto estão dispostos a acompanhá-las nessas cobranças. “É preciso exigir mudanças também pela televisão, se realmente queremos erradicar a violência de gênero. É obscena a quantidade de publicidade que colocam a mulher em um lugar que ocupava há cinco décadas”, pontuou à IPS o economista Sergio Drucaroff. “Por acaso acreditam que eu não compro sabão em pó, detergente ou pasta de dente? São inadmissíveis as dezenas de programas que têm segmentos dedicados às piadas machistas, pejorativas, sobre as mulheres”, acrescentou.
“Precisamos conscientizar como homens todos aqueles homens machistas, que maltratam suas mulheres ou as agridem com palavras, porque isso também as afeta. Temos que mostrar-lhes que ser macho não é ser violento”, disse à IPS o funcionário público Luis Bignone.
Muitas das queixas foram contra a justiça, inclusive por parte da presidente, que apoiou a manifestação. “De alguns juízes melhor nem falar: apenas seis meses de condenação para um homem que moeu a socos sua mulher na rua”, afirmou Fernández. “Não é só um problema judicial ou policial. Estamos diante de uma cultura devastadora do feminino”, escreveu no Twitter.
“No dia em que as mulheres disseram basta”, segundo manchete da imprensa local, também houve participação de familiares das vítimas. Um dos casos que agitaram o protesto foi o recente assassinato de Chiara Páez, de 14 anos e grávida, enterrada na casa de seu namorado, também adolescente. Mas esse foi apenas
um dos feminicídios de maior repercussão, entre muitos outros de mulheres mortas por seus parceiros ou ex-parceiros.
Julia Ibarra carregava a foto de sua filha Tamara López, de 21 anos, assassinada em El Tigre, município vizinho a Buenos Aires, onde foram denunciados vários casos de tráfico de pessoas, violações e mortes, em meio à hipótese de tráfico de drogas com cumplicidade das autoridades.
“No dia 15 de janeiro, por volta das 23 horas, Tamara saiu de casa e me disse que voltaria logo. Eu denunciei os que a mantinham aterrorizada, mas apareceu morta nove dias depois”, contou à IPS a mãe de Tamara, que era noiva de um vendedor de drogas, vinculado a pelo menos outros dois casos de morte de mulheres. Envolverde/IPS