Internacional

Histórico passo contra violência machista

manifestantes
Um grupo de manifestantes com cruzes pretas, simbolizando as vítimas de feminicídio no Peru e em outros países latino-americanos, passa por uma rua do centro de Lima, durante a marcha realizada dia 13 deste mês sob o lema Nem Uma a Menos. Foto: Noemi Melgarejo/IPS

Por Aramís Castro, da IPS – 

Lima, Peru, 17/8/2016 – Com uma marcha, sob o lema Nem Uma Menos, a sociedade peruana se pronunciou contra a violência dirigida às mulheres, no que representa uma tomada de consciência coletiva no terceiro país em agressões sexuais do mundo.A manifestação em Lima, capital do país,no dia 13 deste mês, acompanhada de protestos em uma dezena de outras cidades, surgiu como rejeição a sentenças judiciais que causaram escândalo por serem muito brandas com os agressores em casos de feminicídios, maus tratos de companheiras e ex-companheiras, e agressões sexuais.

O caso que detonou o protesto foi o de ArletteContreras, golpeada violentamente por Adriano Pozo,seu então companheiro, em um hotel da cidade de Ayacucho, em julho de 2015. A agressão foi registrada pelas câmeras de circuito interno de televisão.Apesar disso, Pozo, filho de uma autoridade política da região, foi condenado a apenas um ano de prisão, pelas acusações de feminicídio em grau de tentativa e estupro, mas suspensapelas atenuantes de estar bêbado e agir por ciúme. Um tribunal superior ratificou a sentença no mês passado, o que o promotor do caso qualificou de “indigno”.

“Queremos justiça, queremos que esses homens agressores, esses homens estupradores e assassinos, sejam presos. Queremos que o Estado dê segurança às nós as vítimas”,afirmou Contreras à IPS durante a marcha, que foi encabeçada por vítimas e familiares, e terminou diante do Palácio da Justiça.Dados da Organização Mundial da Saúde e de outros organismos mostram que o Peru é o segundo país da América Latina em assassinatos de mulheres por razão de gênero e o terceiro do mundo em estupros, com a particularidade de que 42% dessas agressões ocorrerem em suas casas e 90% das denúncias ficarem impunes.

“Basta”, “foraestupradores”, “poder judicial, vergonha nacional”, “toca em uma, toca em todas”, foram algumas das frases gritadas durante a manifestação, da qual participaram aproximadamente cem mil pessoas segundo os organizadores de um protesto surgido a partir das redes sociais e sem bandeira partidária, embora o presidente do país, Pedro Pablo Kuczynski, e membros de seu governo tenham participado.

Entre os presentes havia famílias completas, incluídos pais e crianças, destacando-se os parentes de vítimas de feminicídios que carregavam cartazes com as fotos das mulheres mortas ou dos agressores, e seus nomes.“Minha filha foi morta por um homem que foi condenado a apenas seis meses de prisão preventiva”, denunciou Isabel Laines, que carregava um cartaz com a foto de sua filha. Ela contou à IPS que viajou mais de quatro horas de ônibus, do departamento de Ica, ao sul, para unir-se à mobilização em Lima.

Da marcha também participaram familiares e vítimas de esterilizações forçadas,na década de 1990, durante o governo de Alberto Fujimori (1990-2000).Em 2002,uma comissão investigadora do parlamento calculou que mais de 346 mil mulheres foram esterilizadas durante a administração Fujimori contra sua vontade.No começo deste mês, o Ministério Público arquivou uma denúncia contra Fujimori e funcionários do Ministério da Saúde de seu governo por este caso, em outra criticada ação contra a justiça e a reparação para essas milhares de afetadas.

As redes sociais foram o espaço a partir do qual surgiu a reação da sociedade,possibilitandoque asvítimas contassem suas histórias e se conectassem com outras em igual situação, sob hashtags como #YoNoMeCallo (eu não me calo), além da comum #NiUnaMenos (nem uma menos).“Depois de ver o vídeo de ArletteContreras e da indignação ao ver seu agressor ser libertado, organizamos um grupo no Facebook e começamos um pequeno bate-papo, uma pequena reunião”, contou à IPS uma das organizadoras da marcha e do coletivo Nem Uma Menos, Natalia Iguíñiz.

O presidente Pedro Pablo Kuczynski durante sua participação em parte do trajeto da marcha contra a violência dirigida às mulheres no Peru, onde somente no primeiro semestre deste ano houve 54 feminicídios e 118 tentativas frustradas. Foto: Presidência do Peru
O presidente Pedro Pablo Kuczynski durante sua participação em parte do trajeto da marcha contra a violência dirigida às mulheres no Peru, onde somente no primeiro semestre deste ano houve 54 feminicídios e 118 tentativas frustradas. Foto: Presidência do Peru

Somente no primeiro semestre deste ano, foram registrados no país 54 casos de feminicídio e 118 tentativas, segundo o Ministério da Mulher. Os números também indicam que todos os dias são cometidas 16 estupros no país. Esses dados mostram que, entre 2009 e 2015, foram assassinadas 795 mulheres por razões de gênero, 60% delas entre 18 e 34 anos.O fenômeno ocorre em uma sociedade até agora permissiva com a violência de gênero, segundo denunciam organizações defensoras dos direitos das mulheres e mostram as pesquisas.

Um levantamento realizado pela empresa depesquisasIpsos, em Lima, antes da marcha, apontava que 41% das mulheres entrevistadas acreditam que o Peru é “nada seguro” para elas e 74% consideram que vivem em uma sociedade machista.No entanto, 53% de todos os entrevistados acreditam, por exemplo, que, se uma mulher veste uma minissaia, é culpada pelo assédio que sofrer nos espaços públicos, e 76% concordam que a mulher apanhe do homem se este descobrir uma infidelidade.

Desde o início do governo Kuczynski, em 28 de julho, o tema entrou na agenda pública e diferentes atores políticos já se pronunciaram em favor de reforçar mecanismos como a capacitação dos operadores policiais e judiciais, para que apliquem melhor as leis em casos de maus tratos contra as mulheres.“O problema da violência de gênero é que o silêncio absorve os golpes e não é fácil denunciar”, pontuou o presidente antes de participar da marcha, como fizeram vários ministros, legisladores e outras autoridades.

Iguíñiz destacou que a marcha representou o começo de uma nova maneira de enfrentar o fenômeno da violência contra as mulheres no país e que será mantida a mobilização social com mais encontros e atividades.“Existem muitas pessoas, milhares se organizando. Aqui estamos em um pequeno grupo apresentando algumas coordenadas básicas para finalmente haver um grande número de grupos trabalhando em cultura, em seus bairros, em milhares de ações que estão sendo tomadas em nível nacional, em distritos, sindicatos e associações diversas”, apontou. A seu ver, a convocação “marcou tanto por causa de sua amplitude”.

Sob o movimento Nem Uma Menos, já houve outras mobilizações contra a violência machista em outros países latino-americanos, como a Argentina, onde também aconteceu uma manifestação na capital, Buenos Aires, em junho de 2015.“Estamos em coordenação com os coletivos de outrospaíses. Vamos fazer uma plataforma para petições, mas estamos planejando fazê-la em nível regional, para todos os países da América Latina”, afirmou a ativista.

O grupo privado no FacebookNem Uma Menos: Mobilização Já, que desde julho impulsionou a convocação, já tem 60 mil membros e foi o espaço onde se coordenou a marcha, à qual se somaram depois meios convencionais e organizações de defesa dos direitos humanos.E centenas de mulheres vítimas de maus tratos, agressão sexual ou assédio no trabalho começaram a deixar seus testemunhos no espaço digital, em um processo que continuará.

A marcha também se estende por uma dezena de cidades, como Cusco, Arequipa, Libertad. Além disso, peruanos residentes no exterior apoiaram a mobilização com atividades em cidades como Barcelonae Madri, na Espanha, Genebra, na Suíça, Londres, na Inglaterra, e Washington, nos Estados Unidos, entre outras. Envolverde/IPS

*Com a colaboração de Alicia Tovar e Jaime Vargas (Lima).