por Rose Delaney, da IPS-
Londres, Grã-Bretanha, 9/11/2016 – As consequências do colonialismo e do despojo sofrido pelos povos originários do Canadá não foram reconhecidos pela população de “colonos”, afirma a especialista em justiça indígena Lisa Monchalin. E, em especial, destacou o impacto do legado colonial sobre os indígenas do Canadá atualmente, por ocasião do lançamento de seu último livro, The Colonial Problem: An Indigenous Perspecive on Crime and Injustiçe in Canada (O problema colonial: Uma perspectiva indígena sobre crimes e injustiça), na Universidade Colégio de Londres este mês.
Durante a Colônia, a população autóctone foi obrigada a depender de um sistema estrangeiro que dava pouca atenção à sua cultura e aos seus costumes. Os colonos europeus eliminaram os direitos dos indígenas, rapidamente, mediante uma estrutura hierárquica que os considerava como “o problema indígena”. A solução colonial para o “problema” foi mortal. Como resultado direto da colonização europeia, a população autóctone se converteu em um povo em extinção, literalmente, com a morte de 80% a 90% de seus integrantes por doenças trazidas da Europa.
No século 18, foram distribuídas cobertas infectadas com varíola para erradicar os indígenas. Os que sobreviveram às enfermidades foram deslocados à força. Muitos acabaram confinados em terrenos menores, assimilados culturalmente e obrigados a abandonar suas tradições ou deixados à própria sorte em territórios com poucos recursos. “Também se pode atribuir à colonização a prevalência da violência contra as comunidades indígenas ao longo dos séculos, inclusive a violência de gênero”, afirmou Monchalin.
Antes da colonização, as sociedades tradicionais nativas se orgulhavam de sua organização matriarcal, honrando e valorizando a natureza “sagrada” das mulheres em sua comunidade. Elas tinham uma grande importância e ocupavam posições de liderança e poder, e havia uma divisão equitativa do trabalho. Segundo Monchalin, “os atos de violência sexual eram raros antes do contato europeu”.
O sistema europeu de governança despojou as indígenas de seu ofício, já não podiam ser valentes líderes e, por outro lado, os colonizadores quiseram instaurar a ideia de que eram simples subordinadas dos homens da comunidade. Sob o regime colonial, só eles podiam falar em nome de suas comunidades. Os colonos começaram a criar a imagem da indígena como a “outra exótica”, e se referiam a elas como “squaws”, a versão feminina do selvagem, e a descreviam como “sem rosto humano, luxuriosas e imorais”, disse Monchalin.
As perspectivas coloniais arraigadas não só transformaram a identidade feminina indígena em uma mercadoria sexual, como levaram a uma generalizada objetificação sexual, que permitiu justificar a violência sexual, pois essas mulheres só “tinham forma humana”. A subordinação e a opressão das indígenas infundidas na época colonial se mantêm até nossos dias. Construções sexualizadas e romanceadas das “eróticas” indígenas habilitaram o assédio sexual e os estupros em todo o país.
“No Canadá, 87% das indígenas sofrerão algum tipo de violência física na vida, e uma em cada três mulheres será estuprada”, destacou Monchalin. As indígenas continuam vitimadas pelas estruturas de um sistema colonial desumanizador que existe até hoje e que lhes arrebatou seu modo de vida e as considerou “seres inferiores”. O problema veio à luz em 2014, quando foram conhecidos 1.181 casos de indígenas desaparecidas entre 1980 e 2012.
A situação não atraiu a devida atenção e somente no ano passado teve início uma investigação para conhecer a verdade. Também foi denunciada a violência policial que sofrem em todo o país. Numerosos especialistas concordam que o legado histórico da repressão eurocêntrica contribui para a atual injustiça e desigualdade que sofrem as indígenas. Em 1873, um dos principais objetivos da Real Polícia Montada Canadense era atender “o problema indígena”, a fim de conseguir a “rendição silenciosa” dos povos autóctones.
Isso levou à criação de “escolas residenciais”, pensionatos com fundos estatais para educar meninas e meninos indígenas. O governo canadense criou uma política de “assimilação agressiva”, pois acreditava que as escolas administradas pela Igreja eram a melhor forma de preparar essas crianças para viverem em sociedade e, definitivamente, abandonarem suas tradições “selvagens”. As crianças indígenas foram vítimas de violência e abusos, até sexuais, que atingiram um grau de epidemia, e inclusive algumas delas denunciaram que foram empregadas para “experimentos nutricionais”. Após quase um século de “violência estatal”, a última escola residencial fechou em 1996.
A necessidade de eliminar, silenciar e condenar um povo por sua origem étnica habilitou a violência estatal e os maus tratos contra os indígenas por parte das autoridades. Questões sistêmicas de racismo e discriminação “legitimam” atos de brutalidade policial e detenções injustas. De fato, há uma clara e exagerada presença de indígenas nas prisões canadenses, com 4,3% de sua população encarcerada.
A injustiça colonial herdada persiste até hoje e é responsável pelo fato de os povos autóctones do Canadá sofrerem abusos, violência e preconceitos diariamente. Sete gerações de vítimas das escolas residenciais, a arraigada exploração feminina, a violência estatal, as detenções ilegais, entre outras atrocidades, criaram um trauma intergeracional nas comunidades indígenas de todo o país, ressaltou Monchalin.
Atualmente, o governo federal do Canadá começa a voltar sua atenção à negligência generalizada e às más políticas sofridas por várias gerações de indígenas. O primeiro-ministro, Justin Trudeau, declarou publicamente sua intenção de começar uma nova relação próspera entre o Canadá e os povos originários. “Nenhuma relação é mais importante para mim e para o Canadá do que as Primeiras Nações, a Nação Mestiça e Inuit”, afirmou em uma assembleia das Primeiras Nações, em dezembro de 2015.
O Canadá prevê investir US$ 8,4 bilhões nos próximos cinco anos, a partir de 2016-2017, para melhorar as condições socioeconômicas dos povos indígenas e de suas comunidades e conseguir uma mudança transformadora. “Mediante educação, criação de consciência e vontade de confrontar e questionar o passado violento, a população canadense poderá finalmente celebrar a identidade indígena e, definitivamente, reconstruir suas ricas tradições, rompidas à força pelo colonialismo”, resumiu Monchalin. Envolverde/IPS