Internacional

Indígenas do Quênia defendem patrimônio da humanidade

A comunidade mijikenda, no sul do Quênia, não só cuida das florestas sagradas como também pratica a agricultura e a pecuária. Foto: Miriam Gathigah/IPS
A comunidade mijikenda, no sul do Quênia, não só cuida das florestas sagradas como também pratica a agricultura e a pecuária. Foto: Miriam Gathigah/IPS

Por Miriam Gathigah, da IPS – 

Kaya Kinondo, Quênia, 2/7/2015 – No sul da província Costeira do Quênia fica um dos locais mais singulares do planeta, composto pelos restos de várias aldeias fortificadas, venerados pelo povo indígena mijikenda como a morada sagrada de seus ancestrais. Conhecidos localmente como kayas, esses sítios selváticos remontam ao século 16, quando, acredita-se, a migração de povos pastores da atual Somália deu origem à fundação de várias aldeias, que se estendiam ao longo de 200 quilômetros dessa província, a cerca de 500 quilômetros da capital Nairóbi.

Os kayas prosperaram durante séculos, e seus moradores desenvolveram seu próprio idioma e seus costumes. Mas as aldeias começaram a se fragmentar no começo do século 20, devido à fome e aos combates armados. Embora hoje em dia estejam desabitados, os mijikendas continuam cuidando dos kayas, que são venerados por serem depositários de suas antigas crenças e práticas. Mas agora os kayas correm perigo.

A descoberta, nos últimos três anos, de grandes jazidas de minerais de terras raras nessa região fez com que as florestas se convertessem em alvo para a extração, o desenvolvimento e o deslocamento da população indígena. Na medida em que os promotores imobiliários e as mineradoras se interessam por essas terras, seus habitantes se preparam para uma luta pelo que o Banco Mundial considera uma das economias de maior crescimento na África subsaariana.

Mnyenze Abdalla Ali, do Conselho de Idosos do kaya Kinondo, que representa uma selva do condado de Kwale, na ponta mais austral da província, explicou à IPS que os mijikendas “se consideram cultural e espiritualmente unidos às suas florestas”. A comunidade mijikenda, com um total de 1,9 milhão de habitantes, segundo o mais recente censo, compreende nove tribos com língua e cultura comuns.

Cada tribo tem seu próprio kaya, que significa “lar” ou povoado construído em uma clareira da floresta, detalhou Ali. “Nada pode ser tirado da selva, nem mesmo um galho caído pode ser usado como lenha em nossas casas”, acrescentou Hamisi Juma, uma residente local. Em consequência, os 50 kayas espalhados pelos condados de Kwale, Mombasa e Kilifi, na província Costeira, abrigam um nível bastante alto de biodiversidade.

A comunidade cuida detalhadamente dos arredores das florestas kayas, que também são o cemitério de seus ancestrais. Foto: Miriam Gathigah/IPS
A comunidade cuida detalhadamente dos arredores das florestas kayas, que também são o cemitério de seus ancestrais. Foto: Miriam Gathigah/IPS

O ministério de Meio Ambiente, Água e Recursos Naturais do Quênia declarou a zona um ponto excepcional de biodiversidade e se comprometeu a destinar os fundos e recursos necessários para sua proteção. Mas a região é algo mais do que um rico cinturão ecológico.

A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) acrescentou, em 2008, os kayas à sua prestigiosa lista de sítios de Patrimônio Mundial, se referindo à área como “um exemplo excepcional de assentamento humano tradicional representativo de uma interação única com o ambiente”. A Unesco também assinalou que os kayas representam uma “fonte fundamental do sentido de ‘estar no mundo’ do povo mijikenda e de seu lugar dentro do cenário cultural contemporâneo do Quênia”.

Além disso, as florestas são muito apreciadas como repositórios de plantas e ervas medicinais, segundo Eunice Adhiambo, gestora de projetos do Centro Ujamaa, uma organização não governamental que apoia a luta dos mijikendas para preservar os kayas. No Quênia, “35% dos sítios de maior valor de conservação encontram-se aqui”, acrescentou. “Se os promotores se saírem bem, perderemos grande parte da riqueza que a mãe natureza nos deu. Temos a responsabilidade de conservar este presente porque não podemos comprá-lo em nenhum lugar”, ressaltou.

Porém, nem todos nesse país de 20 milhões de pessoas compartilham seu sentir, em particular os economistas, investidores e responsáveis políticos interessados em que se cumpra a expansão econômica prevista, de 5,4%, em 2014, para 6% ou 7% até 2017.

A indústria mineradora degradou seriamente algumas florestas kaya, sobretudo no condado de Kilifi, na província Costeira do Quênia. Foto: Miriam Gathigah/IPS
A indústria mineradora degradou seriamente algumas florestas kaya, sobretudo no condado de Kilifi, na província Costeira do Quênia. Foto: Miriam Gathigah/IPS

Em 2012, a mineradora Cortec Mining Kenya Ltd anunciou que havia encontrado uma jazida de minerais de terras raras no valor de US$ 62,4 bilhões e que investiria até US$ 200 milhões em um empreendimento em Mrima Hill, local de várias florestas kayas. A empresa projetou produção inicial anual entre 2.900 e 3.600 toneladas de nióbio, um elemento utilizado em soldas de alta temperatura para tipos especiais de aço, como os usados na produção de gasodutos, automóveis e motores à reação.

Os especialistas calculam que a mina de Mrima Hill é a sexta maior do mundo, com vida útil entre 16 e 18 anos, o que colocaria o Quênia na lista dos principais exportadores de nióbio. Mas, devido à reação adversa de organizações ambientais e outros grupos da sociedade civil diante do projeto, preocupados pelo impacto da mineração em sítios ecológicos e culturais sensíveis, o governo revogou a permissão inicial de 21 anos concedida à companhia.

No começo de 2015, o governo confirmou a decisão de um tribunal que revogou a permissão, e anunciou que o Estado controlaria a prospecção dos minerais. No dia 20 de março, o ministro de Mineração, Najib Balala, declarou, em um comunicado de imprensa, que “nem a Cortec nem outra empresa poderão trabalhar em Mrima. Esta será gerida em nome do povo do Quênia e, especialmente, das pessoas dos condados de Mrima e Kwale em seu conjunto”.

Entretanto, as comunidades indígenas continuam vendo com preocupação a ambiciosa agenda de desenvolvimento econômico do Quênia. Os setores de mineração e o de imóveis se converteram nos principais motores do crescimento do país, e as jazidas minerais de terras raras poderiam ser um grande impulso nesse sentido.

Além disso, a descoberta, em 2013, de petróleo e gás natural no condado de Turkana, na fronteira entre Quênia e Sudão do Sul, junto com a notícia de que os exploradores haviam encontrado titânio ao longo dos 500 quilômetros de costa, reavivou o temor de que as florestas kayas fossem invadidas e destruídas.

O Centro Ujamaa afirma que algumas comunidades indígenas começam a ceder às pressões das indústrias mineradoras e à tentação de dinheiro rápido que os empresários oferecem. O kaya Chivara, no condado de Kilifi, por exemplo, está completamente degradado devido à invasão humana, enquanto outros, sobretudo no condado de Kwale, rico em minerais, estão em alto risco.

“A iminente extração de nióbio seguramente degradará a floresta”, alertou Adhiambo, destacando que os mijikendas terão um papel importante na luta para impedir todo desenvolvimento potencialmente destrutivo.

Até o momento, o kaya Kinondo está em boas mãos. O Conselho de Idosos se mantém vigilante sobre a proteção das florestas. “Se houver más intenções dentro dessa floresta, uma maldição cai sobre você e cremos que é possível que nem consiga sair com vida”, advertiu Rashid Bakari, um guia que trabalha com jovens da comunidade para levar os visitantes aos kayas, em entrevista à IPS.

A Constituição do Quênia também é uma fonte de proteção. Em seu artigo 44 diz que a resolução de disputas sobre terras consuetudinárias deve incluir a participação da comunidade. Envolverde/IPS

* Esta reportagem faz parte de uma série concebida em colaboração com o Ecosocialist Horizons.