Por Edgardo Ayala, da IPS –
São Salvador, El Salvador, 21/7/2016 – A decisão do máximo tribunal de revogar a lei de anistia coloca El Salvador diante da tarefa de decidir se convém julgar os que cometeram graves violações dos direitos humanos durante a guerra civil. Também evidencia que, após mais de duas décadas do fim do conflito, em 1992, a reconciliação ainda não chegou a esse país centro-americano de 6,3 milhões de habitantes.
No centro do debate está a imperiosa necessidade de se fazer justiça às vítimas de crimes de guerra, e de outro lado encontra-se a imensa tarefa que isso representa e a dificuldade de consegui-lo: abrir casos que ocorreram há mais de duas décadas, com evidências alteradas, no caso de existirem, ou extraviadas, e testemunhas que já morreram.
Os opositores à abertura desses casos destacam a precariedade do aparelho judicial, com graves deficiências e sufocado por casos atuais aguardando sentenças.“Creio que o conjunto dos salvadorenhos, da população e das forças políticas, não concorda em abrir esses julgamentos, viraram a página”, afirmou o analista de esquerda, Salvador Samayoa, um dos signatários dos Acordos de Paz que puseram fim a 12 anos de guerra civil, que deixou 70 mil mortos e mais de oito mil desaparecidos forçados.
Samayoa acrescentou que El Salvador tem muitos problemas atuais para gastar sua energia naqueles do passado. Para as organizações de direitos humanos, saber a verdade, fazer justiça e proporcionar reparação prevalece sobre conjunturas e necessidades atuais.“Os violadores de direitos humanos já não podem se esconder atrás da lei de anistia, de modo que devem ser investigados de uma vez por todas”, opinou à IPS o diretor da não governamental Comissão de Direitos Humanos de El Salvador, Miguel Montenegro.
A Suprema Corte de Justiça, em sentença considerada histórica, declarou, no dia 13 deste mês, inconstitucional a Lei de Anistia Geral para a Consolidação da Paz, aprovada em 1993, abrindo a porta para levar ao banco dos réus os acusados de cometerem crimes de guerra e de lesa humanidade durante a guerra civil.Em sua resolução, esse tribunal afirma que são inconstitucionais os artigos 2 e 144 da lei de anistia, porque violam o direito de acesso a justiça e reparação das vítimas de crimes de guerra e de lesa humanidade.
Também decidiu que esses crimes não prescrevem e podem ser julgados independente de quando foram cometidos.“Isso é o que estamos esperando por anos. Sem essa sentença, as pessoas não encontram justiça”, afirmou à IPS a ativista EngraciaEcheverría, do Centro para a Promoção da Defesa dos Direitos Humanos Madeleine Lagadec.
Esta organização leva o nome da enfermeira francesa violada e assassinada por tropas governamentais em abril de 1989, quando atacaram um hospital da guerrilha da Frente FarabundoMartí para a Libertação Nacional (FMLN).Echeverría ressaltou que, apesar de muita informação dos casos ter se extraviado, resta outra que pode ser retomada pelos investigadores da Procuradoria Geral da República, responsável pelo processo penal, caso surjam pessoas requerendo instruir uma causa.
A lei foi duramente questionada por organizações de direitos humanos fora e dentro do país desde sua aprovação, em março de 1993. Seus críticos afirmavam que promoveu a impunidade, ao proteger os membros do exército e da guerrilha que cometeram abusos de direitos humanos durante o conflito.Mas foi defendida por militares, da reserva e da ativa, pela direita e por empresários do país, pois evitava que justamente esses oficiais, vistos como os que evitaram o triunfo da FMLN, enfrentassem a justiça.
“Todos os crimes cometidos foram (motivados) por uma agressão guerrilheira”, afirmou o general da reserva, Humberto Corado, ex-ministro da Defesa entre 1993 e 1995.A revogada lei foi aprovada apenas cinco dias depois que a Comissão da Verdade – que com mandato das Nações Unidas investigou os abusos de direitos humanos durante a guerra civil – divulgou seu relatório, com 32 casos específicos: 20 cometidos pelo exército e 12 pelos rebeldes.
Entre esses casos, destacaram os assassinatos do arcebispo Oscar Arnulfo Romero, em março de 1980, de quatro religiosos norte-americanas, em dezembro do mesmo ano, e o de centenas de camponeses crivados de balas em vários massacres, entre eles o de El Mozote, em dezembro de 1981, e o de Sumpul, em maio de 1980. Há também os de seis padres jesuítas, uma mulher e sua filha, em novembro de 1989, um caso que já é investigado por um tribunal espanhol.
A Comissão da Verdade também apontou alguns comandantes da FMLN como responsáveis pela morte de vários prefeitos, tomados como alvo por serem considerados parte da estratégia governamental contrainsurgente. Alguns desses insurgentes apontados agora são funcionários do governo, como o diretor de Proteção Civil, Jorge Meléndez.
Antes de chegar ao poder, em 2009, o FMLN, já reconvertido em partido político, criticou duramente a lei de anistia e pediu sua revogação, alegando que fomentava a impunidade. Mas, após ganhar naquele ano as eleições presidenciais com Mauricio Funes, sua postura mudou e deixou de defender a anulação da lei. Desde 2014, o país é governado por um antigo comandante do FMLN, Salvador Sánchez Cerén.
O partido governante qualificou a anulação da lei como “irresponsável”, enquanto o presidente afirmou, no dia 15 deste mês, que os magistrados da Corte “não medem os efeitos que podem ter na frágil convivência” e pediu que se assuma a sentença “com responsabilidade e maturidade em função dos interesses do país”.Após a declaração de inconstitucionalidade da lei, os meios de comunicação apresentaram uma série de opiniões e análises sobre o tema, a maioria apontando o risco de o país se desestabilizar e sucumbir ao caos, pela infinidade de demandas nos tribunais com casos da guerra civil.
“Aos que afirmam que os magistrados colocaram o país em um inferno, é preciso dizer que o inferno foi vivido, e continua sendo vivido, pelas vítimas e seus familiares”, ressaltaram em um comunicado, no dia 15 deste mês, as autoridades da Universidade Centro-Americana José Simeón Cañas, onde viviam e trabalhavam as jesuítas assassinadas em 1989. A maioria das vítimas quer ser ouvida, conhecer a verdade e dar rosto a quem tem que perdoar, acrescentaram
De fato, em meio ao debate ressurge a ideia de justiça restaurativa como um mecanismo de encontrar a verdade e sanar as feridas das vítimas, sem que isso necessariamente implique o encarceramento dos acusados. “Não queremos que sejam colocados presos por um longo tempo, queremos que os responsáveis nos digam por que mataram se sabiam que eram civis. E que nos peçam perdão, queremos que alguém assuma essas mortes”, destacouEchverría.
Por sua vez, Montenegro, vítima ele próprio de detenção ilegal e torturas em 1986, explicou que investigar os que cometeram crimes de guerra é uma necessidade para encontrar a verdade, mas é mais importante ainda para que o país encontre os mecanismos idôneos para perdoar e reparar.Já para o general Corado, a justiça restaurativa é “uma hipocrisia que só busca a vingança”. Envolverde/IPS