Por José Adán Silva, IPS –
Manágua, Nicarágua, 30/6/2015 – Dizem que se cansaram de esperar por justiça após três séculos de esquecimento e desprezo por causa da cor de sua pele. Mulheres líderes afrodescendentes de 22 países das Américas acordaram criar uma plataforma política que busca, no prazo de dez anos, empoderar as mulheres negras da região e superar a discriminação de que são vítimas.
“Lutaremos com todas as nossas forças para romper as cadeias do racismo e da violência por motivos raciais”, afirmou à IPS a colombiana Shary García, ao fim da Primeira Cúpula de Líderes Afrodescendentes das Américas, realizada em Manágua entre os dias 26 e 28 deste mês, da qual participaram 270 delegadas.
Segundo García, dos três dias de debate nasceu uma plataforma de 17 demandas e eixos de luta, colocada na Declaração Política de Manágua e destinada a desterrar no continente toda forma de discriminação por uma combinação de motivos raciais e de gênero.
“Não foi fácil resumir em 17 ideias as queixas e demandas de 270 mulheres e suas famílias, que levam uma vida inteira de discriminação, violência e negação de direitos, mas todas, e cada uma das que aqui vieram, sabemos que assim é o início do fim da discriminação histórica”, ressaltou García.
A dominicana Altagracia Balcácer afirmou à IPS que esses 17 eixos cortam transversalmente conceitos como combater o racismo, exigir vida digna, políticas de superação da pobreza, direito de decidir sobre seu futuro e liberdade para decidir sobre direitos sexuais reprodutivos.
“As demandas incluem deter a violência contra as mulheres negras e tornar visíveis as populações afrodescendentes em censos e estatísticas nacionais, proteger e dar oportunidades para a infância, a juventude e a adolescência dessas populações”, acrescentou Balcácer, lembrando que também incorporam “proteger o ambiente, ampliar o acesso aos recursos naturais e econômicos, garantir a segurança e a soberania alimentar”.
Segundo Balcácer, além disso “exige proteção e tratamento digno aos migrantes, resgate e reconhecimento do nosso patrimônio cultural, respeito por parte dos meios de comunicação, defesa da não estigmatização das pessoas negras, ampliação do acesso à justiça e garantia de segurança social para as mulheres e suas comunidades”.
A nicaraguense Dorotea Wilson, coordenadora-geral da Rede de Mulheres Afro-Latino-Americanas, Afro-Caribenhas e da Diáspora (RMAAD), explicou à IPS que a plataforma não exige o reconhecimento de direitos, mas a aplicação de todos os tratados, de todas as leis e convenções internacionais sobre as mulheres afro que foram subscritos após a Conferência Mundial Contra o Racismo, realizada na cidade sul-africana de Durban, em 2001.
O de Manágua “não é um documento de boas intenções, é um documento oficial de exigência e demanda de implantação de políticas públicas em todos os países americanos, para finalmente se começar a reconhecer e dar lugar às populações negras do continente”, destacou Wilson. “Com essa plataforma, queremos avançar no cumprimento de todos os nossos direitos no contexto da Década Internacional da População Afrodescendente da ONU”, acrescentou a líder da RMAAD, que tem sede central em Manágua e está presente em 24 países.
A ONU declarou em janeiro o período 2015-2024 como Década Internacional dos Afrodescendentes, centrado na proteção dos direitos das pessoas de ascendência africana, reconhecendo sua contribuição e a preservação de seu rico patrimônio cultural. Segundo as Nações Unidas, na América vivem 200 milhões de pessoas que se identificam como descendentes de africanos.
Wilson explicou que, no encerramento da década, as mulheres latino-americanas esperam ter reduzido o nível de pobreza e documentado com dados confiáveis e indicadores verificáveis a situação real da população afrodescendente do continente. “Se falamos em dados confiáveis é porque nós não existimos nas estatísticas atuais, somos invisíveis, por isso outro êxito dessa cúpula é que em cada país da América vamos implantar um observatório de acompanhamento das demandas dessa reunião em Manágua”, acrescentou.
Para esse outro objetivo, elas garantem contar com apoio técnico e institucional de agências da ONU, países cooperantes europeus, organizações não governamentais, defensores dos direitos humanos e promotores de direito de gênero. Também tentarão fazer com que sua plataforma de demandas seja acolhida pela Organização de Estados Americanos para seu acompanhamento.
Segundo Wilson, a ideia é incidir nos Estados para obrigá-los a definir políticas públicas a favor das mulheres e da população afrodescendente, e criar métodos de observação e verificação das demandas que permitam, quando acontecer a próxima cúpula, dentro de cinco anos, analisar o desenvolvimento das propostas.
A coordenadora-geral da RMAAD contou que os depoimentos das mulheres participantes revelam uma percepção de aumento da violência por parte de policias e grupos raciais contra pessoas negras, sobretudo nos Estados Unidos e no Brasil, dois países representados na cúpula. “Nos Estados Unidos os crimes por ódio racial são conhecidos mundialmente, mas, pela mesma condição de invisibilidade da população afrodescendente da América Latina, as mortes violentas por razões raciais na região não vêm a público”, destacou Wilson.
Nilza Iriaci reafirmou, durante sua participação na mesa sobre direitos humanos, que “em meu país, o Brasil, os crimes de ódio acontecem diariamente, mas não há escândalo por isso”, e que a violência racial está aumentando no contexto regional. O Brasil é o país latino-americano com maior população afro.
Em 2010, um estudo do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, intitulado População Afrodescendente da América Latina, atualizado dois anos depois, revela que, apesar de haver progressos legais e institucionais quanto aos direitos deste segmento populacional, suas condições de vida eram, em sua maioria, de pobreza e discriminação.
Para Vicenta Camusso, representante das mulheres afrodescendentes do Uruguai, o contexto segue sendo o mesmo de quando foi realizado o estudo. “É o mesmo de sempre: nossos direitos e nossas condições de pobreza não melhoraram nem um pingo”, afirmou à IPS. Para ela, apesar de em todos os países da região existirem marcos legais a favor dos direitos das mulheres e das populações afro, não existe destinação de recursos para sua implantação.
Segundo Camusso, “em parte por isso, a maioria das mulheres afro continua vivendo em condições de vida inferiores em relação a mulheres de outras raças, e a juventude negra vive o mesmo processo de exclusão e violência que seus antepassados contemporâneos”. Também denunciou que, “depois de Durban, pouco ou nada mudou para a população feminina afrodescendente das Américas, e mais de 80% dos afrodescendentes da região vivem em estado de pobreza e desigualdade social, com poucas oportunidades de superação por razões étnico-raciais”.
Camusso recordou que a conferência contra o racismo, realizada nessa cidade da África do Sul, surgiu a partir dos esforços oficiais da comunidade internacional para estabelecer ações a fim de combater o racismo, a discriminação racial, os conflitos étnicos e a violência associada a essas formas de discriminação.
A Declaração e o Programa de Ação de Durban estabeleceram o compromisso dos Estados, das agências da ONU, da cooperação para o desenvolvimento e de organizações privadas e da sociedade em geral, de “lutar contra o racismo, a discriminação racial, a xenofobia e todas as formas conexas de intolerância”.
Do total de população negra americana estimada pelas Nações Unidas, pouco mais de cem milhões seriam mulheres que “continuam submetidas a deslocamentos forçados, emigrações ilegais, criminalização de jovens e abusos sexuais”. Envolverde/IPS