Internacional

Mulheres revolucionam manejo do lixo

Moradoras da comunidade de Balgüe, no município de Altagracia, participam da coleta e classificação de resíduos doados à Associação de Mulheres Recicladoras de Altagracia, na ilha de Ometepe, na Nicarágua. Foto: Karin Paladino/IPS
Moradoras da comunidade de Balgüe, no município de Altagracia, participam da coleta e classificação de resíduos doados à Associação de Mulheres Recicladoras de Altagracia, na ilha de Ometepe, na Nicarágua. Foto: Karin Paladino/IPS

Por José Adán Silva, da IPS – 

Altagracia, Nicarágua, 3/9/2015 – Um grupo de mulheres pobres de Ometepe, uma paradisíaca ilha dentro do lago de Cocibolca, na Nicarágua, decidiu se dedicar à reciclagem de seus resíduos, em uma iniciativa que não teve o êxito econômico esperado, mas inspirou toda a comunidade a se dedicar à causa de manter limpa esta reserva da biosfera.

Tudo começou em 2007. Maria del Rosario Gutiérrez recorda que se interessou pelo assunto quando viu na televisão pessoas, que se dedicavam a recolher dejetos nos lixões de Manágua, brigando entre si pelo conteúdo de sacos cheios de garrafas plásticas, vidro e metal.

Por que o lixo podia valer tanto para as pessoas chegarem a se ferir por ele?, se perguntou. Ela vivia em uma situação paupérrima, sobrevivendo com seus dois filhos com o que cultivava em uma pequena parcela de terras comunitárias, no município de Altagracia, e realizando trabalhos esporádicos.

Uma vizinha, com quem conversou a respeito, recordou Gutiérrez de que em Moyogalpa, o outro município que compõe a ilha, um escritório comprava metais, vidros e garrafas plásticas. Descobriram que em sua comunidade alguém comprava os materiais enviados por hotéis da área e, após lavá-los, os enviava a Manágua para serem vendidos.

Assim esta mulher, agora com 30 anos, começou sua nova atividade: todos os dias saía a pé percorrendo grandes distâncias com um saco aos ombros que ia enchendo de dejetos encontrados em todas as partes da ilha. Sua vizinha se entusiasmou e passou a acompanhá-la, como outras amigas, todas em iguais condições de desemprego e pobreza. Começaram a percorrer os caminhos de bicicleta para recuperar os dejetos jogados pelos turistas e depois os vendiam a receptadores desses materiais.

“Não era muito dinheiro, mas dava para a comida. Como não tínhamos emprego, não nos preocupava o tempo que levava, embora o trabalho fosse bem cansativo no começo”, contou Gutiérrez à IPS. Ver as mulheres percorrendo as ruas, recolhendo e enchendo grandes sacos com resíduos, se tornou uma cena comum, à qual outras foram se somando.

Maria del Rosario Gutiérrez (centro), acompanhada de sua filha María e de outra integrante da Associação de Mulheres Recicladoras de Altagracia, Francis Socorro Hernández, descansam após uma jornada recolhendo e processando resíduos na ilha de Ometepe, na Nicarágua. Foto: José Adán Silva/IPS
Maria del Rosario Gutiérrez (centro), acompanhada de sua filha María e de outra integrante da Associação de Mulheres Recicladoras de Altagracia, Francis Socorro Hernández, descansam após uma jornada recolhendo e processando resíduos na ilha de Ometepe, na Nicarágua. Foto: José Adán Silva/IPS

Miriam Potoy, da Fundação Entre Vulcões, recorda que a organização não governamental decidiu apoiar as mulheres recicladoras, começando por um grupo que passou a fazer o mesmo em Moyogalpa. “Inicialmente as apoiamos com equipamentos de segurança e higiene, depois as capacitamos sobre manejo de dejetos, tratamento do material e até no uso diversificado dos resíduos, para que não só o comercializassem, mas para aprenderem a fazer artesanato com os materiais, para vender aos turistas e conseguir dinheiro extra”, explicou à IPS.

Admirados por seu trabalho, outros setores e outras instituições também decidiram apoiá-las. A prefeitura de Altagracia lhes entregou um local para armazenar e selecionar os dejetos, empresários do turismo, que antes separavam o lixo para vender à reciclagem, decidiram doá-lo às mulheres, enquanto empresas de serviços e alimentos forneceram equipamentos e assistência.

O trabalho do grupo ganhou tamanha solidariedade e cooperação, que a prefeitura conseguiu financiamento para fornecer por um tempo às mulheres cerca de US$ 2 diários e transporte gratuito para transporte do material ao local de onde zarpam os barcos para a cidade de Rivas. Dali a carga prossegue por estrada até Manágua, distante 120 quilômetros.

“A comunidade valorizou o trabalho das mulheres não só pelo fato de que ajudavam a manter a ilha limpa, o que sem dúvida melhorava a imagem para atrair turistas, mas porque apresentaram um desejo intenso de superação e melhoria de suas condições econômicas e de suas famílias”, pontuou Potoy. E o fizeram, “a partir de uma atividade não tradicional, que rompia os moldes do papel que as mulheres assumiram historicamente nessas comunidades rurais e isoladas”, acrescentou.

Francis Socorro Hernández, outra das primeiras recicladoras, contou à IPS que no começo “era difícil as pessoas nos verem recolhendo os resíduos”. Mas, depois de participar de painéis de gênero, administração de microempresa e ambiente, “assumi que fazia algo importante e que pior era viver em um ambiente contaminado e resignada com a pobreza, e perdi a vergonha”, disse, sorrindo.

O vulcão de Concepción, um dos que adornam a ilha de Ometepe, situada dentro do lago de Cocibolca, no porto de San Jorge, departamento de Rivas, ocidente da Nicarágua. Foto: Karin Paladino/IPS
O vulcão de Concepción, um dos que adornam a ilha de Ometepe, situada dentro do lago de Cocibolca, no porto de San Jorge, departamento de Rivas, ocidente da Nicarágua. Foto: Karin Paladino/IPS

Seu trabalho foi reforçado com outras iniciativas surgidas por seu exemplo. Um especial é o de Karen Paladino, oriunda da Alemanha e com nacionalidade nicaraguense, diretora da organização comunitária Educação Meio Ambiental de Ometepe, que trabalha com a infância e os jovens da ilha em campanhas de conscientização ambiental. Ao conhecer o trabalho das recicladoras, ela motivou os estudantes e professores das escolas a apoiarem a causa, organizando desde então jornadas de limpeza e coleta de resíduos, que depois são doados para o armazém onde as mulheres classificam os materiais.

A transformação no manejo do lixo se dá em um cenário paradisíaco: a ilha de Ometepe, com 276 quilômetros quadrados de natureza, em meio a um lago com mais de 8.624 quilômetros quadrados de água doce, o Cocibolca, também chamado de Grande Lago da Nicarágua, no ocidente deste país de 6,1 milhões de habitantes.

O coletivo que deu início a tudo é a Associação de Mulheres Recicladoras de Altagracia. Antes eram dez, agora restam seis, que seguem com o trabalho de recolher todo o dejeto possível com valor para reciclagem e tirá-lo da ilha com destino a Manágua, onde é vendido e lhes dá uma renda para a sobrevivência da família.

Gutiérrez contou que a missão foi difícil pelo alto custo do transporte, pela insegurança do trabalho e pelo pouco financiamento para o projeto. “Apoio sempre tivemos, graças a Deus, a prefeitura nos apoiou, alguns hotéis também, gente da União Europeia (UE) deu fundos para melhorar as condições do aterro sanitário. Mas precisamos de mais recursos para recolher o material, processá-lo e tirá-lo da ilha”, afirmou.

A prefeitura de Moyogalpa, com apoio da UE, conseguiu melhorar os aterros dos municípios insulares. Agora existem, em ambos, galerias onde a matéria orgânica é tratada, recipientes para produção de minhocas, para fazer adubo orgânico, recipientes para armazenar água, e um poço para produzir compostagem.

Estudantes e mães de um colégio do município de Altagracia preparam garrafas plásticas para produção de cestos de lixo. É uma das inumeráveis iniciativas de reciclagem surgidas na ilha de Ometepe, na Nicarágua, pelo exemplo do grupo de mulheres dedicadas a recolher e processar resíduos. Foto: Karin Paladino/IPS
Estudantes e mães de um colégio do município de Altagracia preparam garrafas plásticas para produção de cestos de lixo. É uma das inumeráveis iniciativas de reciclagem surgidas na ilha de Ometepe, na Nicarágua, pelo exemplo do grupo de mulheres dedicadas a recolher e processar resíduos. Foto: Karin Paladino/IPS

Os dois municípios entregaram às recicladoras lotes de terra para cultivo de autoconsumo, onde colhem verduras e grãos para suas famílias. Contudo, o esforço e a solidariedade não bastaram para mantê-las unidas e algumas abandonaram a Associação. Com o afundamento internacional do preço do petróleo, o valor dos dejetos também caiu, e os ganhos diminuíram, o que desanimou algumas que voltaram a fazer o que faziam antes: combinar trabalho agrícola com o serviço doméstico.

“Eu estava muito comprometida no trabalho de coleta, mas senti que o projeto não ia bem e precisava alimentar minha família, por isso fui com meu marido cultivar feijão e verdura para ter mais renda”, disse María à IPS, uma das que deixou o grupo. “Mas continuo recolhendo material e, embora não participe do coletivo, entrego às companheiras”, acrescentou esta mulher que pediu para ter seu sobrenome citado.

Quando algumas partiram, outras se incorporaram. “Os dejetos continuam chegando, a cooperação com nosso trabalho vai melhorar. Nossas famílias nos apoiam e estamos entusiasmadas”, ressaltou à IPS Eveling Urtecho, uma das novatas. Com a liderança de Gutiérrez, o apoio municipal e o retorno do apoio da União Europeia, as recicladoras acreditam que vão melhorar as condições econômicas e de trabalho em breve.

Anualmente, chegam a Ometepe (duas montanhas, em língua náhuatl) 50 mil turistas, em média, e pelo menos dez milhões de toneladas de plástico, segundo organizações ambientais da ilha. A associação de Altagracia recolhe mensalmente entre mil e 1.200 quilos desse plástico e quantia semelhante é recolhida por suas companheiras de Moyogalpa. Até as recicladoras começarem sua revolução, em Ometepe a maioria dos dejetos acabava nas ruas, rios e quintais dos fundos. Quando chovia, as correntes os arrastavam para o lago, ou eram queimados a céu aberto. Envolverde/IPS

* Esta reportagem faz parte de uma série concebida em colaboração com Ecosocialista Horizons.