Por Ivet González, da IPS –
Santo Domingo, República Dominicana, 4/2/2016 – Uma mulher prepara ramos de rosas amarelas no mercado de rua em Pequeno Haiti, um bairro pobre da capital da República Dominicana. “Não quero falar, não tire fotos”, pediu à IPS essa trabalhadora, acompanhada de uma menina que parecia ser sua filha.Outras vendedoras do grande mercado informal em que se converteram as ruas do bairro, todas afrodescendentes, também se recusam a conversar.
“Têm medo porque pensam que serão deportadas”, disse, sussurrando, uma comerciante, enquanto mexia um caldo em um fogão à lenha em plena calçada.Esse medo se deve à última onda de deportações, dentro do conflito migratório, algumas vezes aberto e outras escondido, que domina as relações deste país com o Haiti, o mais pobre da América Latina e com sua população majoritariamente negra, com o qual compartilha a ilha caribenha La Espanhola.
Segundo dados oficiais, a Direção Geral de Migração dominicana deportou, entre agosto de 2015 e janeiro de 2016, 15.754 haitianos sem documentos, e regressaram voluntariamente ao seu país outros 113.320, incluídos 23.286 menores de idade. “Esse processo afeta em maior grau as mulheres, porque, quando a identidade dominicana é negada a um filho ou uma filha, as mães são as responsáveis diretas por não ter legalizado sua situação”, explicou à IPS Lilian Dolis, coordenadora do não governamental Movimento de Mulheres Dominicano-Haitiana (Mudha).
“Se a mãe não tem os documentos, então a documentação dos filhosé questionada. E, no caso das migrantes haitianas, não basta se casar com um dominicano, embora a Constituição lhe conceda a nacionalidade do marido. Muitas vezes esse direito é violado, por isso elas ainda carregam uma carga muito tortuosa”, acrescentou a ativista do movimento nascido em 1983.
A mais recente crise migratória começou em 2013, quando uma sentença do Tribunal Constitucional determinou os novos parâmetros para obter a nacionalidade. A medida mais conflituosa é que não são considerados dominicanos os filhos de imigrantes ilegais nascidos no país, inclusive aqueles inscritos no registro civil. As pessoas nessa situação ficam em um limbo sem nacionalidade, ou apátridas, segundo críticas de muitos organismos internacionais.
Com base nessa decisão, o governo promoveu a Lei Especial de Naturalização, que pôde ser aplicada uma única vez, entre 23 de maio de 2014 e 1º de fevereiro de 2015, às filhas e aos filhos de estrangeiros residentes que nasceram em solo dominicano entre 16 de junho de 1929 e 18 de abril de 2007. Durante esse período a norma de regime especial foi aplicada a 8.755 pessoas.
Paralelamente, as autoridades implantaram, de 1º de junho de 2014 a 17 de junho de 2015, o Plano Nacional de Regularização de Estrangeiros para todos os imigrantes radicados no país que estivessem em situação irregular. Nesse programa puderam se inscrever 288.466 imigrantes sem documentos, na maioria haitianos, para obter uma autorização de permanência e trabalho. Mas apenas 240 mil cumpriram todos os requisitos e conseguiram status legal.
Desde agosto, as forças policiais realizam contínuas operações e os que não estão com documentos em dia vão para “campos de boas-vindas”, instalados em vários pontos da fronteira para serem devolvidos ao Haiti. “A maioria das haitianas trabalha fora de casa, e poucas têm situação econômica que permita serem donas de casa”, apontou Antonia Abreu, umadominicano-haitiana que há 40 anos vende arranjos de flores para festas, presentes e também funerais no mercado em Pequeno Haiti.
Conhecida pelo seu sobrenome, La Araña contou à IPS que “as mulheres vendem roupas, comida, aplicam perucas, são empregadas doméstica e há trabalhadoras sexuais. Muitas são paleteras (vendedoras ambulantes) que sofrem os abusos da polícia, que apreende seus carrinhos e suas mercadorias quando não têm documentos”. Ela ressaltou que “as que trabalham de forma saudável conseguem se inserir na sociedade e contribuir para o país”.
Entre a rara mescla de odores de especiarias, esgoto a céu aberto, comidas típicas e lixo, muitas mulheres subsistem a duras penas nesse mercado do bairro de maioria haitiana, com a venda de flores, refeições, alimentos crus, roupas, utensílios domésticos e equipamentos eletrodomésticos de segunda mão.O bairro, localizado bem perto de uma grande via comercial e da turística Cidade Colonial de Santo Domingo, está abandonado pelas autoridades municipais, ao contrário de seus pujantes vizinhos.
Isso transformou o local em um submundo onde sobrevive uma população incalculável em um entorno decadente. Entretanto, quase não há criminalidade, destacam moradorese não moradores.A clientela de seus pontos de venda na rua costuma ser de imigrantes haitianos, que trabalham em condições qualificadas como escravidão por organizações internacionais. Também recebe pessoas de renda muito baixa, nesse país de 9,3 milhões de habitantes, onde 33% das famílias vivem na pobreza, de acordo com o Mapa da Pobreza na República Dominicana 2014.
“As imigrantes ilegais não podem trabalhar, nem estudar ou ter uma vida pública. Acabam indo diretamente para o setor do serviço doméstico e trabalho informal. E, mesmo que tenham a documentação, as dominicano-haitianas sempre são excluídas dos projetos sociais”, afirmou Dolis.Neste país de arraigada cultura machista, as haitianas e suas filhas sofrem uma profunda exclusão em virtude de um coquetel de xenofobia, racismo e discriminação de gênero, segundo diferentes estudos e especialistas.
“Elas estão invisíveis. Nem mesmo sabemos quantas são”, lamentou a ativista. “Os dados dos censos não são confiáveis para saber a população dominicana de ascendência haitiana e a pesquisa do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) já está desatualizada” apontou.Dessa forma Dolis se referiu aos últimos dados sobre a matéria, colhidos pela Pesquisa Nacional de Imigrantes, que o estatal Escritório Nacional de Estatísticas realizou em 2012 com apoio do UNFPA.
O estudo estimou que na época viviam em território dominicano cerca de 560 mil imigrantes, dos quais 458 mil nascidos no Haiti.A falta de estatísticas é um obstáculo ao trabalho do Mudha, que está presente em quatro províncias e cinco municípios dominicanos, com suas mensagens e ações para reivindicar os direitos das mulheres dominicano-haitianas, com ênfase nos sexuais e reprodutivos.
O movimento é liderado por um coletivo de 19 mulheres e conta com 62 promotoras, que realizam atividades em comunidades urbanas e rurais. Com seu acompanhamento, o grupo beneficia de maneira indireta mais de seis mil pessoas. A Mudha assegura que o Estado dominicano nunca reconheceu as mulheres haitianas e suas filhas como sujeitos de direito. “Sempre se falou da imigração de trabalhadores braçais, mas nunca das trabalhadoras braçais, ou seja, as mulheres que acompanhavam os seus maridos ou vinham, e vêm, para realizar esse trabalho”, pontuou Dolis.
Fontes históricas identificam, desde antes de 1844, a presença de trabalhadores braçais haitianos nos bateyes (assentamentos ao redor de usinas de açúcar), que suportaram sobre seus ombros os duros trabalhos no cultivo da cana e na produção de açúcar, o motor durante séculos da economia dominicana.Atualmente, a força de trabalho haitiana no país é importante demais no setor agrícola, nos ramos da construção, manufatura, hotelaria e comércio. Envolverde/IPS