Internacional

Nas trincheiras curdas contra o EI

Guerrilheiro do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) mantém sua posição em Nouafel, uma aldeia árabe a oeste da cidade de Kirkuk, norte do Iraque. Foto: Karlos Zurutuza/IPS
Guerrilheiro do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) mantém sua posição em Nouafel, uma aldeia árabe a oeste da cidade de Kirkuk, norte do Iraque. Foto: Karlos Zurutuza/IPS

Por Karlos Zurutuza, da IPS – 

Kirkuk, Iraque, 15/9/2015 – Os soldados saúdam a bandeira, ou sorriem enquanto acolhem nos braços crianças resgatadas do horror da guerra. São os murais da 12ª Divisão de Infantaria iraquiana, ainda visíveis à entrada do acampamento K1, a oeste da cidade de Kirkuk. Mas os antigos ocupantes fugiram, após a fulgurante chegada do extremista Estado Islâmico (EI), em junho de 2014. Hoje, os novos inquilinos do K1 são um combinado formado por unidades peshmerga (exército curdo) e guerrilheiros do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK).

Feitas as apresentações, o heval Rebar (camarada Rebar, em curdo) se oferece para acompanhar o enviado especial da IPS em direção ao sul, sempre ao longo de um muro de terra levantado à direita. Uma cadeia de barreiras vigiadas por peshmergas dá acesso a postos de combate, bem como a aldeias recuperadas dos jihadistas do EI, muitas completamente destruídas pelos ataques aéreos dos Estados Unidos e seus aliados.

O coronel peshmerga Jamal Masim Jafar recebe a IPS dentro de um bunker ao pé de um promontório de terra de aproximadamente 15 metros de altura, e que tem sua réplica a cada quilômetro ao longo do muro. Jafar fala de um combate “constante”. “Recebemos fogo de franco-atiradores a partir de duas casas e uma torre levantada do outro lado, mas também nos atingem com um artefato caseiro fabricado com botijões de gás”, contou o oficial, acrescentando que a última troca de fogo importante foi “há apenas uma hora”.

Sobre a colaboração com a guerrilha curda, Jafar se mostra satisfeito. “Temos muito boa relação com o PKK e lutamos juntos, não só pelos curdos, porque o EI é inimigo de toda a humanidade”, pontuou. Sentado à sua direita, Rebar concorda. Após uma forçada xícara de chá, Jafar convida este jornalista a subir ao promontório, do qual poderíamos ver a frente entre sacos de terra. A menos de um quilômetro se divisa Al Noor, uma das centenas de localidades levantadas por Saddam Hussein (que governou o Iraque entre 1979 e 2003) para receber os colonos árabes em terra curda.

Al Noor está hoje sob controle do EI, mas, na primeira semana deste mês, o combinado curdo lançou uma ofensiva em grande escala um pouco mais ao sul, após a qual recuperaram nove localidades em uma área de 24 quilômetros quadrados. “Esses avanços são possíveis graças à ajuda internacional, tanto em suprimentos como em cobertura aérea”, ressaltou Jafar enquanto, já no promontório, caminhava para uma das peruas armadas com artilharia.

As mulheres também estão presentes na linha de frente no combate ao Estado Islâmico, em Kirkuk, na região autônoma curda do Iraque, norte do país. Foto: Karlos Zurutuza/IPS
As mulheres também estão presentes na linha de frente no combate ao Estado Islâmico, em Kirkuk, na região autônoma curda do Iraque, norte do país. Foto: Karlos Zurutuza/IPS

“Acabamos de instalar as metralhadoras. São francesas e chegaram faz pouco tempo. Também recebemos óculos para visão noturna, imprescindíveis neste entorno, e mísseis teledirigidos Milano que chegaram da Alemanha”, contou Jafar. “Quanto à cobertura aérea, nos dão sempre que a pedimos”, acrescentou este oficial que passou sete anos com as tropas norte-americanas no Iraque, que invadiram e ocuparam este país entre 2003 e 2011.

A harmonia entre as facções curdas é evidente, mas esta nunca foi a tendência nessa região autônoma do norte do Iraque. Disputada por curdos, árabes e turcomanos, Kirkuk pertence aos chamados “territórios em disputa” entre Bagdá e Erbil, capital administrativa da região autônoma curda. É um dos conflitos mais duros do Iraque, desde muito antes do surgimento do EI. Na última década, o conflito étnico e sectário foi demolidor nessa parte do país em que a população se viu presa no fogo cruzado entre as diferentes facções.

A parada seguinte no caminho para o sul é Nouafel, uma aldeia árabe incrustada contra o muro onde o PKK mantém uma de suas posições. De uma das casas que serve de quartel-general, o camarada Selim prefere não revelar o número de guerrilheiros que estão nesta frente. “Temos o suficiente para lutar contra o EI”, contou, sorrindo. Há outro promontório protegido por sacos de terra, do qual o camarada Farashin vigia, com a ajuda de binóculos, a localidade de Wastaniya, hoje praça do EIs.

O coronel peshmerga, Jamal Masim Jafar, diz estar satisfeito com o apoio que suas forças curdas recebem do exterior para combater o Estado Islâmico. Foto: Karlos Zurutuza/IPS
O coronel peshmerga, Jamal Masim Jafar, diz estar satisfeito com o apoio que suas forças curdas recebem do exterior para combater o Estado Islâmico. Foto: Karlos Zurutuza/IPS

O armamento dos guerrilheiros se reduz aos fuzis de assalto, alguns de longo alcance, e um par de metralhadoras pesadas apontando para o horizonte. Embora seja óbvio que o PKK não parece se beneficiar do mesmo modo que seus colegas de trincheira, o testemunho do camarada Aso confirma que a guerrilha curda tampouco se encontra desamparada.

Aso contou que “na primavera recebemos um curso de guerrilha urbana de dois meses dado por instrutores italianos. Aprendi muitas coisas que não me ensinaram durante minha instrução em Qandil”, explicou este jovem de Tuz Khormato, localidade próxima, brutalmente castigada durante anos pela guerra. “Eram profissionais, nunca nos deixaram tirar uma foto nem nos disseram a qual companhia pertenciam”, acrescentou.

O que torna particularmente interessante esta posição de combate é que fica em uma aldeia onde a maioria de seus moradores não abandonou suas casas, apesar de ter permanecido sob controle do EI por seis meses. A pedido do camarada Rebar, vários deles concordaram em falar com a IPS, em uma casa próxima à que agora a guerrilha ocupa.

À primeira vista, a relação entre civis e combatentes parece cordial. Trocam saudações e os guerrilheiros se atrevem com algumas palavras em árabe para quebrar o gelo. Enquanto isso, Arkan Bader Ali, o anfitrião, serve chá árabe, do qual se bebe um trago e se passa a xícara de mão em mão no sentido dos ponteiros do relógio. O ruído dos disparos a poucos metros do lugar, junto com o da munição mais pesada, não provoca mais do que um leve olhar para cima.

Bader Alí lamentou que suas terras, como as da maioria em Nouafel, estejam hoje na “terra de ninguém”, entre os curdos e o EI. No momento, suas vacas e ovelhas estão escondidas a leste deste povoado, afirmou. Também usando a tradicional dishdasha árabe – uma camisa folgada que vai até os pés –, como os demais moradores, Juma Hussein Toma assegurou que os sete meses que permaneceram sob controle dos jihadistas não alteraram a vida do povoado de forma significativa.

“Quando chegaram, anunciaram por alto-falantes que a mesquita da revolução triunfara, e que haviam nos libertado dos infiéis, mas não sofremos ameaças de nenhum tipo”, pontuou o camponês. Os que se foram, o fizeram por falta de trabalho ou recursos, mas não por causa da guerra, acrescentou Hussein.

“O EI matou gente em Al Noor porque eram membros do Conselho do Despertar (uma milícia iraquiana que lutou contra a rede jihadista Al Qaeda com ajuda norte-americana), mas nos deixaram em paz”, destacou Mohamed Al Ubeid, lembrando que dois jovens da localidade haviam se unido ao EI “desde o princípio”.

Os moradores afirmam estar satisfeitos com a presença dos guerrilheiros em sua aldeia, mas como deram essas declarações na presença deles, é impossível saber se se sentiram coagidos. Após uma despedida tão cordial quanto foi o resto do encontro, um dos combatentes apontou para uma profunda trincheira que rodeia seu improvisado quartel-general em Nouafel. “A cavamos porque não confiamos nessa gente”, disse o guerrilheiro, antes de se despedir para voltar ao seu posto de guarda no muro. Envolverde/IPS