Por Marek Marczynski*
Cancun, México, 11/9/2015 – As explosões que destruíram em agosto um templo de mais de dois mil anos, na cidade de Palmira, na Síria, são mais um exemplo de como o grupo armado autodenominado Estado Islâmico (EI) utiliza as armas convencionais para se impor. O que permitiu o crescimento da capacidade bélica do EI? A resposta está na história recente, nas armas que o Oriente Médio recebeu a partir da década de 1970.
Depois de tomarem o controle de Mosul, a segunda cidade do Iraque, em junho de 2014, os combatentes do EI exibiram armas e veículos militares, em sua maioria fabricados nos Estados Unidos, que foram vendidos ou entregues às forças armadas iraquianas.
No final de 2014, a organização Investigação de Armamentos em Conflito publicou uma análise das munições utilizadas pelo EI no norte do Iraque e na Síria. Os 1.730 cartuchos analisados foram fabricados em 21 países diferentes, e mais de 80% procediam de China, a antiga União Soviética, Estados Unidos, Rússia e Sérvia.
Uma investigação mais recente, encomendada pela Anistia Internacional, também mostra que, embora parte das armas do EI tenham sido produzidas em 2014, uma grande porcentagem é de armas pequenas e leves, veículos blindados e artilharia da época soviética e do Pacto de Varsóvia, dos anos 1970 e 1980.
Esses cenários tiram o sono de estrategistas militares e de interessados na política externa, mas são parte do pesadelo diário na vida de muitos civis nos países em guerra, como Iraque e Síria.
Essas armas capturadas pelo EI ou vendidas ilegalmente a este e outros grupos armados, permitiram execuções sumárias, desaparecimentos, violações e torturas e outros graves abusos de direitos humanos, em um conflito que fez milhões de refugiados em seus próprios países ou as obrigou a buscar refúgio em nações vizinhas.
O fato de armas e munições autorizadas pelos governos para sua exportação possam cair tão facilmente em mãos de violadores dos direitos humanos diz muito do quanto está mal regulamentado o comércio mundial de armas. O pior é que este é um caso em que a história volta a ser repetir. Mas os governantes do mundo ainda não aprenderam a lição.
Para muitos, a Guerra do Golfo no Iraque (1991) revelou o perigo que implica o comércio internacional de armas sem os devidos controles e garantias. Após o conflito em que as poderosas forças armadas do presidente iraquiano Sadam Hussein invadiram o vizinho Kuwait, soube-se que seu país estava inundado por armas fornecidas por China, Estados Unidos, França, Grã-Bretanha e Rússia, os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU).
Vários desses países também haviam armado o Irã na década anterior, fomentando uma guerra de oito anos com o Iraque, que causou a morte de centenas de milhares de civis. Agora são os mesmos Estados que novamente enviam armas à região, frequentemente sem as garantias necessárias para impedir seu desvio ou tráfico.
Esses países estiveram entre as mais de cem delegações nacionais que participaram da primeira Conferência dos Estados Partes do Tratado sobre Comércio de Armas (TCA), realizada no balneário mexicano de Cancún, entre 24 e 27 de agosto. A participação da sociedade civil nesta e em futuras conferências do TCA é importante para evitar que decisões potencialmente mortais sejam tomadas a portas fechadas.
A transparência do processo do TCA, entre outras medidas, é primordial, já que implica a diferença entre ter controles e garantias que possam chegar a salvar vidas e um tratado debilitado, enquanto os Estados seguem operando como de costume no comércio das armas convencionais.
Esse comércio, envolto no segredo e no valor de dezenas de milhares de milhões de dólares, causa a morte de mais de meio milhão de pessoas por ano, bem como incontáveis feridos, ao mesmo tempo em que coloca milhões em risco de sofrerem crimes de guerra, de lesa humanidade e outras violações dos direitos humanos.
O TCA inclui uma série de normas sólidas para deter o fluxo de armas aos países, quando se sabe que seriam usadas para cometer atrocidades. O tratado obteve rapidamente o apoio da comunidade internacional, incluído o de cinco dos dez principais exportadores de armas: Alemanha, Espanha, França, Grã-Bretanha e Itália. Os Estados Unidos, de longe o maior produtor e exportador de armas, é um dos 58 países que assinaram mas ainda não ratificaram o TCA. Outros grandes produtores de armas, como Canadá, China e Rússia, nem mesmo o assinaram.
Um dos objetivos do TCA é “prevenir e erradicar o tráfico de armas convencionais e evitar seu desvio”, por isso os governos têm a responsabilidade de tomar medidas para evitar situações nas quais seus acordos de armas provoquem abusos dos direitos humanos. Contar com controles rigorosos ajudará a garantir que os Estados já não possam abrir as comportas de suas armas para países em conflito ou cujos governos empregam armas para reprimir os direitos humanos das pessoas.
Quanto mais Estados apoiarem o tratado, e mais sólidos e transparentes forem seus controles e suas garantias, mais mudanças acontecerão nas águas turvas do comércio internacional de armas. O TCA obrigará os governos a serem mais exigentes com relação aos que fazem negócios.
A comunidade internacional falhou com o povo da Síria e do Iraque, mas o TCA dá aos governos a oportunidade histórica de dar um passo fundamental para a proteção da população civil de horrores semelhantes no futuro. Deveriam se aferrar a essa oportunidade com as duas mãos. Envolverde/IPS
* Marek Marczynski é diretor da seção da Anistia Internacional dedicada aos militares, à segurança e à polícia.