Por Kanya D’Almeida, da IPS –
Nações Unidas, 26/6/2015 – Desde 2002, um ano depois de invadir o Afeganistão, os Estados Unidos investiram mais de US$ 100 bilhões no desenvolvimento e na reconstrução desse país asiático de 30 milhões de habitantes. Nesse período, dois mil soldados morreram em território afegão, em operações militares que custaram bilhões de dólares a Washington.
Para seus críticos, o legado deixado pelos Estados Unidos é um fracasso colossal e custoso, não apenas em termos monetários, mas também pela morte de 26 mil civis afegãos que a ação militar norte-americana provocou. Mas outros destacam os benefícios socioeconômicos que a ocupação deixou.
A Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid) afirma que o Afeganistão melhorou sua expectativa de vida, bem como os centros de saúde e o acesso a educação, o que representa o lado “positivo” da intervenção de Washington. Desse ponto de vista, a perda de vidas humanas deve se contrapor ao fato de as pessoas viverem mais, menos mães morrerem ao dar à luz e mais crianças irem à escola.
Mas o Inspetor Geral Especial para a Reconstrução do Afeganistão (Sigar), John F. Sopko, sugere que “grande parte do entusiasta discurso oficial (sobre a reconstrução) deve ser visto com cautela”, para não cair nos excessos informativos. Criado em 2008 pelo Estados Unidos, o Sigar tem a faculdade de “fiscalizar, inspecionar, investigar e revisar de outras maneiras todos e cada um dos aspectos da reconstrução”.
Em um discurso, no dia 5 de maio, Sopko destacou que a reconstrução é uma “tarefa enorme e de longo alcance”, que praticamente não deixou de afetar parte alguma da vida afegã. Os fundos destinados à reconstrução, para apoiar, por exemplo, as forças armadas e a polícia, perfurar poços de água e buscar alternativas de cultivo para a papoula, “superam o valor do Plano Marshall para reconstruir a Europa ocidental depois da Segunda Guerra Mundial”, explicou.
“Lamentavelmente, desde o começo até o dia de hoje, grandes quantidades de dinheiro dos contribuintes foram perdidas devido ao desperdício, à fraude e ao abuso. Esses desastres costumam ocorrer quando os funcionários norte-americanos que implantam e supervisionam os programas não conseguem distinguir a realidade da fantasia”, pontuou Sopko.
Em um exemplo recente dessa tendência, dois ministros afegãos citaram versões da imprensa local para informar o Parlamento sobre a fraude no setor educacional, alegando que funcionários do governo de Hamid Karzai (2001-2014) falsificaram dados sobre o número de escolas ativas no Afeganistão a fim de receberem fundos estrangeiros.
O escritório do “Sigar leva muito a sério essas denúncias, pois partiram de pessoas de status elevado no governo afegão e também pelo fato de a Usaid investir cerca de US$ 769 milhões no setor educacional afegão, e iniciou uma investigação sobre o assunto”, disse um funcionário desse organismo à IPS.
A investigação oficial, apresentada no dia 18 deste mês ao administrador interino da Usaid, questiona as estatísticas, muito citadas, que indicam que a ajuda oficial ao desenvolvimento deu lugar ao aumento na quantidade de estudantes matriculados entre 2002 e 2013, de 900 mil para mais de oito milhões. Embora a Usaid defenda os números, procedentes do Ministério da Educação afegão, não tem a capacidade para verificá-las de forma independente.
Diante da acusação de existência de “escolas fantasmas, estudantes fantasmas e professores fantasmas”, o Sigar solicitou à Usaid que responda se é capaz de investigar as denúncias e garantir que seus dados sejam precisos para que não se desperdice dinheiro dos contribuintes norte-americanos, ressaltou o funcionário desse organismo.
Essa não é uma tarefa fácil no Afeganistão, onde os alunos se espalham por 14.226 centros de ensino, principalmente nas zonas rurais, e onde nem mesmo o Ministério da Educação tem controle sobre a alfabetização do pessoal docente, os detalhes dos planos de estudo, ou as ameaças à segurança.
Em 2014, o Sigar informou que o Ministério conta os alunos como “matriculados”, embora estejam ausentes da escola por três anos, o que sugere que o número real de meninos e meninas nas aulas seja muito inferior ao oficial, que as agências de ajuda dos Estados Unidos utilizam. Em seu discurso de 5 de maio, Sopko afirmou que um alto funcionário da Usaid acredita que existam quatro milhões de crianças nas escolas, menos da metade do número oficial que delineiam os compromissos de financiamento atuais.
Sem dúvida faltam mais fundos para reforçar o sistema educacional do Afeganistão. Segundo o escritório em Cabul da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), apenas 31% da população maior de 15 anos sabe ler e escrever, uma das piores taxas de alfabetização do mundo. Também há importantes diferenças segundo o gênero e o lugar de residência. A alfabetização feminina limita-se a 17% em nível nacional, mas em Cabul sobe para 34%, enquanto nas duas províncias do sul apenas roça o 1,6%.
As discrepâncias entre as estatísticas oficiais e a realidade não se limitam ao setor da educação, mas se manifestam em muitas áreas do processo de reconstrução. Por exemplo, segundo a Usaid, a expectativa de vida passou de 42 anos, em 2002, para mais de 60 anos, em 2014. Se isso for correto, significará um grande avanço. Mas várias estatísticas em poder do Sigar, incluindo dados fornecidos pela Agência Central de Inteligência e pela Divisão de População da Organização das Nações Unidas indicam uma média de vida inferior, de até 50 anos.
Embora os dados originais procedam diretamente de uma pesquisa sobre a mortalidade no Afeganistão, que o Ministério de Saúde Pública afegão fez em 2010 com fundos da Usaid, o que preocupa o Sigar é que “a Usaid não verificou o que o Ministério fez para corrigir as deficiências em suas funções fiscal, orçamentária, contábil e de aquisições internas”.
O Sigar não é capaz de estimar corretamente as perdas causadas pelos programas mal planejados, o roubo e a corrupção, tanto norte-americana quanto afegão, mas um funcionário do órgão enfatizou à IPS que é difícil imaginar que o custo total para os contribuintes norte-americanos “não esteja nos milhares de milhões de dólares”. Envolverde/IPS