Internacional

Poderosos ignoram a crise humanitária

Acampamento para deslocados no norte do Iraque. Entre os temas debatidos na Cúpula Humanitária Mundial (CHM) estava o de como o setor humanitário pode proteger melhor os civis da violência. Foto: Brandon Bateman/Ocha
Acampamento para deslocados no norte do Iraque. Entre os temas debatidos na Cúpula Humanitária Mundial (CHM) estava o de como o setor humanitário pode proteger melhor os civis da violência. Foto: Brandon Bateman/Ocha

por Baher Kamal, da IPS –

Roma, Itália, 30/5/2016 – A crise humanitária é uma bomba prestes a explodir com 130 milhões de pessoas vulneráveis, que precisam urgentemente receber assistência. No entanto, os países poderosos, principais responsáveis pela conjuntura atual, e que por isso mesmo têm possibilidades de mudá-la, continuam fingindo que não ouvem nem veem os sinais de alarme.

A Cúpula Humanitária Mundial, realizada na cidade turca de Istambul nos dias 23 e 24 deste mês, significou um esforço sem precedentes para as agências da Organização das Nações Unidas (ONU), os países membros e centenas de organizações não governamentais que lançaram um processo de consulta com mais de 23 mil atores, a fim de retratar o drama humanitário atual.

Acordaram um “grande pacto”, a fim de colocar mais recursos nas mãos dos que mais necessitam deles e são vítimas de crises que não causaram. A cúpula também conseguiu apoio unanime para as cinco responsabilidades fundamentais, que contribuirão para aliviar o sofrimento humano, preveni-lo e inclusive terminá-lo.

Cerca de nove mil participantes de 173 países, entre eles 55 chefes de Estado e de governo e centenas de outros atores importantes alertaram sobre o agravamento das crises atuais e fizeram fortes chamados para uma ação, a fim de evitar que a qualquer momento ocorra a explosão da “bomba humanitária”.

Além disso, os governantes do Grupo dos Sete (G7) países mais industrializados e dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU permaneceram à margem da primeira cúpula humanitária, limitando sua presença a delegações com funcionários de menor hierarquia.

A significativa ausência dos dirigentes políticos dos países mais ricos e poderosos enviou um sinal negativo, gerando uma grande frustração devido aos gigantescos esforços realizados pela ONU para preparar a reunião e mobilizar as consciências, para não mencionar os milhões de pessoas mais vulneráveis, presas de dramas humanos que não criaram.

De fato, o maior fluxo de refugiados é resultado de guerras, não só no Afeganistão e no Iraque, países submetidos a vastas operações militares encabeçadas por coalizões do G7, mas também do conflito armado no Iêmen, com apoio dos Estados Unidos e da Europa, e na Síria, onde os membros do Conselho de Segurança, salvo a China, fornecem armas às partes em confronto há seis anos.

Outras vítimas do atual drama humanitário são os “refugiados climáticos”, que fogem da ameaça da morte que significam as secas, inundações e outros desastres sem precedentes, derivados da mudança climática, cujos principais responsáveis são os países mais industrializados.

No Sudão, mulheres fazem fila para receber alimentos em Tawilla, um local para pessoas deslocadas que chegam fugindo de Jebel Marra, em Darful. Esse tipo de assistência de emergência tira fundos de projetos de nutrição em Cartum. Foto: Ocha
No Sudão, mulheres fazem fila para receber alimentos em Tawilla, um local para pessoas deslocadas que chegam fugindo de Jebel Marra, em Darful. Esse tipo de assistência de emergência tira fundos de projetos de nutrição em Cartum. Foto: Ocha

A única exceção foi a chanceler alemã, Angela Merkel, que participou da cúpula, embora se diga que tenha viajado a Istambul para se encontrar com o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, para tentar aliviar a crescente tensão entre Ancara e a União Europeia (UE), causada por acusações mútuas de não cumprimento do acordo de deportação de refugiados concretizado em março.

Em resumo, o acordo UE-Ancara converte a Turquia em um grande “depósito” de milhões de pessoas que fogem de guerras e outros desastres causados pelas atividades humanas, e que pretendem chegar à Europa. Em troca, Ancara recebe do bloco europeu três milhões de euros (US$ 3,34 bilhões) por ano para financiar a manutenção, o alojamento e alimento para três milhões de refugiados que já estão em seu território.

A União Europeia também prometeu autorizar a entrada de cidadãos turcos nos países membros sem necessidade de visto. Porém, ao final da cúpula, Erdogan fez uma ameaça à UE, ao declarar que, se esta não implantar sua parte do acordo, o parlamento turco não ratificará a lei que habilita receber essas pessoas.

Isto é, a Turquia não só deixará de receber “retornados”, como abrirá suas fronteiras aos refugiados e a outros milhões de pessoas que passam por seu território rumo aos países da UE. A “bomba humana” está ativada nas partes da Europa.

Entretanto, apesar dos reveses, a cúpula de Istambul fixou um novo rumo. “Não é um ponto final, é um ponto de inflexão”, afirmou o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, ao final do encontro. E destacou que os governos, as pessoas prejudicadas pelas crises, organizações não governamentais, o setor privado e agências da ONU, entre outros sócios, se juntaram e expressaram seu apoio à Agenda para a Humanidade e suas cinco responsabilidades fundamentais.

“É necessário implantar esta agenda, se queremos que as pessoas vivam com dignidade e prosperidade, e cumprir os históricos acordos da Agenda de Desenvolvimento Sustentável e o da mudança climática”, ressaltou Ban, se referindo ao Acordo de Paris. “Os governos se comprometeram a fazer mais para prevenir conflitos e construir a paz, respeitar o direito humanitário internacional e cumprir seu compromisso com a Carta da ONU”, recordou.

O secretário-geral anunciou que em setembro deste ano informará à Assembleia Geral da ONU os êxitos da cúpula e apresentará propostas para “promover nossos compromissos mediante processos intergovernamentais, fóruns interagências e outros mecanismos”.

O resumo do presidente da cúpula De Pé Pela Humanidade: Compromisso Para a Ação, divulgado ao final do encontro, diz que “os conflitos e as guerras civis elevam a um grau sem precedentes o sofrimento e as necessidades humanitárias, e as graves violações do direito humanitário internacional e os abusos dos direitos humanos são alarmantes; populações inteiras ficam sem os fornecimentos básicos que necessitam desesperadamente”.

O documento também afirma que os desastres naturais, exacerbados pelos efeitos da mudança climática, prejudicam um número muito maior de mulheres, homens, meninos e meninas, minando os êxitos em matéria de desenvolvimento e colocando em risco a estabilidade de países inteiros. “Ao mesmo tempo, não podemos gerar os recursos para enfrentar essas tendências alarmantes e são necessários mais fundos humanitários diretos e previsíveis”, alerta a declaração.

“A cúpula permitiu concentrar a atenção mundial na dimensão das mudanças necessárias, se pretendemos atender os desafios que temos pela frente. Os participantes destacaram que a assistência humanitária não é suficiente para atender de forma adequada nem reduzir de maneira sustentável as necessidades dos 130 milhões de pessoas vulneráveis”, destacou a declaração.

Necessitamos de um novo enfoque coerente se pretendemos fazer frente às causas de raiz, aumentar a diplomacia política para a prevenção e a resolução de conflitos e unir esforços humanitários para o desenvolvimento e para construir a paz, acrescenta o documento.

Segundo a nota, “os governantes do mundo reconheceram a centralidade da vontade política para prevenir e pôr fim aos conflitos de forma efetiva, para enfrentar as causas de raiz, reduzir a fragilidade e fortalecer a boa governança”. “Prevenir e resolver conflitos seria a maior contribuição que poderiam fazer os governantes para reduzir as esmagadoras necessidades humanitárias. A ação humanitária não pode substituir a ação política”, ressalta. Envolverde/IPS