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Por que morreram tantos civis no conflito de Gaza?

A família Qassem ficou sem casa quando os bombardeios israelenses atingiram sua moradia durante a guerra de 2007 e 2008 entre Israel e Gaza. Foto: Mel Frykberg/IPS
A família Qassem ficou sem casa quando os bombardeios israelenses atingiram sua moradia durante a guerra de 2007 e 2008 entre Israel e Gaza. Foto: Mel Frykberg/IPS

 

Gaza, Palestina, 1/4/2015 – A investigação da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre a ofensiva militar de Israel contra Gaza em 2014 foi adiada até junho, enquanto israelenses e palestinos travam uma guerra na mídia para determinar por que morreram tantos civis durante o conflito. O adiamento foi anunciado na sessão do dia 23 de março do Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra.

Israel afirma que fez todo o possível para evitar as vítimas civis em sua campanha militar de julho e agosto do ano passado, mas seus críticos, incluídas organizações de direitos humanos israelenses, duvidam.

“A ferocidade da destruição e a alta proporção de vidas civis perdidas em Gaza lançam sérias dúvidas sobre a adesão de Israel aos princípios de proporcionalidade, distinção e precaução do direito internacional humanitário”, afirmou Makarim Wibisono, relator especial da ONU sobre a situação dos direitos humanos nos territórios palestinos ocupados desde 1967, na sessão do Conselho de Direitos Humanos.

No conflito de 2014 morreram mais de 2.300 palestinos, em sua maioria civis, incluídas mais de 500 crianças, e mais de dez mil pessoas ficaram feridas. O saldo do lado israelense foi de seis civis e 67 soldados mortos. Muitos dos civis palestinos morreram quando Israel bombardeou prédios residenciais na Faixa de Gaza.

A organização israelense de direitos humanos B’Teselem divulgou em janeiro o informe Bandeira Negra: As Implicações Legais e Morais da Política de Ataques aos Edifícios Residenciais na Faixa de Gaza. O relatório se centra na política de ataques às moradias aplicada pelas forças armadas israelenses, com a tentativa de definir se “as afirmações das autoridades de Israel sobre seu compromisso com o direito humanitário internacional são compatíveis com a política de atacar os prédios residenciais”.

O dano a esses edifícios foi enorme e deixou destruídas ou danificadas 18 mil moradias. Mais de cem mil palestinos ficaram sem teto e a maioria continua nessa situação, porque as obras de reconstrução quase não existem.

A B’Tselem investigou 70 incidentes de ataques a casas de civis, nos quais morreram 606 palestinos, metade deles mulheres, 93 bebês e crianças menores de cinco anos, 129 entre cinco e 14 anos, 42 adolescentes e 37 idosos. Segundo a organização, em vários dos casos examinados, as ações das Forças de Defesa de Israel infringiram o direito internacional humanitário.

“Um objetivo militar, o único alvo legítimo de ataque das partes nas hostilidades, se define como aquele que tem contribuição direta para a ação militar, cuja destruição total ou parcial, captura ou neutralização, nas circunstâncias do caso no momento, oferece uma vantagem militar definida para o lado atacante”, explicou a B’Teselem.

“No transcurso dos combates ocorridos no verão (boreal), tanto funcionários do governo como altos chefes militares se abstiveram de definir o objetivo específico da maioria dos ataques”, afirmou a organização. “Por outro lado, o porta-voz das forças israelenses apenas forneceu dados gerais sobre o número de ataques realizados a cada dia contra o que definiu como sítios terroristas”, detalhou.

Segundo a B’Tselem, as forças israelenses teriam mudado essa definição na medida em que o conflito avançava, já que muitas das unidades residenciais atacadas pertenciam supostamente a agentes do movimento palestino Hamás.

Kamal Qassem, de 43 anos, sua mulher Iman e seus cinco filhos de seis a 12 anos, tiveram que se abrigar em um refúgio de emergência da ONU quando as bombas israelenses destruíram sua casa, após duas noites de bombardeios em Beit Hanoun, no norte de Gaza.

“Minha mulher foi ferida durante o bombardeio e passou duas noites no hospital. Ela também precisa de tratamento hospitalar para problemas renais crônicos”, contou Qassem à IPS. “Minha filha Shadha, de nove anos, ficou severamente traumatizada durante os bombardeios e agora sofre de epilepsia e suja os lençóis à noite. Nenhum de nós era combatente”, assegurou.

A contribuição do chefe do Estado Maior militar de Israel, o recém-nomeado Gadi Eisenkot, à doutrina Dahiya, adotada durante a segunda guerra entre Israel e Líbano em 2006, poderia dar algumas respostas sobre a imensa destruição causada na infraestrutura civil de Gaza.

A doutrina Dahiya é uma estratégia militar que prevê a destruição da infraestrutura civil de regimes hostis, e apoia o uso desproporcional da força para conseguir esse fim. A doutrina leva o nome de um subúrbio do sul de Beirute, onde as forças israelenses atacaram e derrubaram grandes prédios de apartamentos na guerra de 2006.

“O que aconteceu no distrito de Dahiya, em Beirute, em 2006, ocorreria em cada povoado a partir do qual fossem feitos disparos em direção a Israel”, afirmou Eizenkot. “Exerceremos um poder desproporcional e causaremos um imenso dano e destruição”, acrescentou o chefe do Estado Maior israelense.

O antigo relator para os territórios palestinos, Richard Falk, escreveu que esta doutrina trata “a infraestrutura civil de adversários, como o Hamás ou o Hezbolá, como sendo objetivos militares permissíveis, o que não é apenas uma clara violação das normas mais elementares do direito da guerra e da moral universal, como também a confissão de uma doutrina da violência que deve ser chamada pelo nome correto: terrorismo de Estado”.

Membros de uma missão da ONU que investigou a guerra em 2007 e 2008 entre Israel e Gaza sugeriram que fora empregada a doutrina Dahyia, enquanto outros analistas afirmam que o mesmo aconteceu nas hostilidades israelenses em 2014. Porém, o lançamento indiscriminado de foguetes do Hamás contra localidades civis israelenses, que precederam o enfrentamento de 2014 e foi uma das principais razões de Israel para lançar seu ataque a Gaza, pode ser reiniciado se o assédio ao território palestino continuar sem um avanço político no horizonte. Envolverde/IPS