Por Silvia Boarini, da IPS –
Leeds, Grã-Bretanha, 2/9/2015 – Uma iniciativa nascida nesta cidade do norte da Grã-Bretanha tem o ambicioso objetivo de acabar com o desperdício de alimentos, de uma vez por todas. Fundado em dezembro de 2013, O Projeto da Real Comida-Lixo (TRJFP), é criação do cozinheiro Adam Smith e consiste em uma rede de restaurantes onde são oferecidos alimentos destinados ao lixo, após serem recolhidos por voluntários e convertidos em pratos comestíveis e nutritivos.
Em troca, os consumidores pagam o que podem, seja em dinheiro, tempo ou alimentos que lhes sobram. O TRJFP acontece de maneira voluntária com doações dos clientes ou outros particulares e mediante a arrecadação de fundos conhecida como crowdfunding. A organização tem apenas um punhado de postos remunerados.
Sentado em uma das mesas do primeiro restaurante que o TRJFP abriu, o Armley Junk-Tion, no subúrbio de Armley, Smith contagia por seu entusiasmo. “Fazemos o certo e é algo que tem um impacto positivo. Acreditamos que podemos potencializar as pessoas e as comunidades e inspirar a mudança em todo o sistema com o crescimento desses restaurantes”, afirmou à IPS este jovem de 29 anos.
Em menos de dois anos, o TRJFP se converteu em uma rede mundial de 110 restaurantes, sendo 14 em Leeds, 40 na Grã-Bretanha e o restante na Alemanha, Austrália, França e África do Sul, entre outros países. “O Armley Junk-Tion preparou 12 mil refeições para dez mil pessoas com produtos que de outra maneira teriam ido para o lixo”, contou Smith. Em 18 meses, a rede alimentou 90 mil pessoas com 60 mil refeições e salvou 107 mil toneladas de alimentos do lixo.
Os voluntários do TRJFP estão todos os dias e a toda hora recolhendo alimentos em casas, empresas de gastronomia, bancos de alimentos, atacadistas, supermercados e seus contêineres de lixo. Também obtém o frango que sobra da rede de restaurantes Nando’s e parte dos “resíduos” de alimentos da rede de supermercados Morrison. “Passamos por cima das datas de validade ou dos danos que apresentam e utilizamos nosso próprio julgamento para definir se a comida é própria ou segura para consumo humano”, explicou Smith.
Entretanto, as toneladas de alimentos recolhidas são quase nada em comparação com a quantidade que ainda se desperdiça a cada ano. A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) calcula que o desperdício de alimentos no mundo equivale a um terço dos alimentos produzidos, ou seja, 1,3 bilhão de toneladas por ano. Isso significa que uma em cada quatro calorias produzidas não é consumida. Segundo a FAO, 795 milhões de pessoas estão cronicamente desnutridas no planeta.
As medidas que as autoridades propõem para remediar o problema tratam essas estatísticas como dois assuntos distintos que exigem duas soluções separadas: reciclar mais nos países ricos e produzir mais alimentos nos países em desenvolvimento. Na realidade, o sistema defeituoso e os interesses da indústria multimilionária ficam intactos.
Tristram Stuart, ativista e autor de Waste – Uncovering the Global Food Scandal (Resíduos – Mostrando o Escândalo Mundial dos Alimentos), afirma que “os quase um bilhão de pessoas que passam fome no mundo poderiam sair da desnutrição com menos de um quarto da comida jogada fora nos Estados Unidos, Grã-Bretanha e Europa”.
Mas a mudança é possível, como demonstra uma lei aprovada em maio pelo Parlamento francês. Agora, os grandes supermercados da França estão proibidos de jogar comida fora sem vender e têm a obrigação de doá-la a organizações de caridade ou aos produtores agrícolas. Entretanto, ativistas franceses contra o desperdício de comida, como os do projeto Les Gars’pilleurs, dizem que esse tipo de lei não ataca o problema central e fornecem uma solução rápida.
Para começar, destacam que os supermercados não são os únicos culpados. Por exemplo, como indica a organização britânica Programa de Ação pelos Resíduos e os Recursos (WRAP), produzem menos de 2% dos resíduos alimentícios da Grã-Bretanha, contra os 47% das casas particulares e 27% dos produtores agrícolas.
“O governo gasta milhões e milhões de libras em campanhas para evitar o desperdício de comida, mas nós nos limitamos a alimentar as pessoas. Dizemos, ‘se você sabe que é seguro comer, por que não come?’. Isso é tudo o que faz falta, não nos custa dinheiro”, destacou Smith.
Como uma iniciativa independente e de base, o TRJFP não considera os resíduos de alimentos um problema ambiental ou socioeconômico. Aborda a questão de maneira integral e trabalha para educar o público, mas também faz lobby junto a ministros e legisladores para que desenvolvam as políticas pertinentes. “E já estivemos em Westminster (sede do Parlamento britânico) algumas vezes falar desse problema. Há muitos interesses em jogo, mas continuaremos trabalhando até que não haja mais desperdício”, ressaltou Smith.
Em Armley, o restaurante lota na hora do almoço. No cardápio há pratos como guisado de carne, costeleta e sopa de lentilha. A clientela inclui setores sociais que normalmente transitam por vias paralelas. Hipsters, pessoas sem teto, profissionais ou desempregados, todos comem a mesma comida, sentam-se nas mesmas mesas e desfrutam do mesmo serviço.
Richard, um alcoólico em recuperação, almoça no Armley Junk-Tion há alguns meses. “É um ponto de encontro para que a comunidade se reúna e coma, independente de sua origem. Não importa o que você quer comer. Sempre há algo no cardápio para todos”, pontuou à IPS.
Para Paul, de 36 anos e um histórico de doença mental, o TRJFP lhe fornece uma importante rede de segurança que os serviços sociais não lhe garantem. “Onde vivo, minha cozinha se limita a um micro-ondas. Devido aos cortes e à falta de serviços de apoio, a única ajuda que recebo é ao frequentar lugares como este”, disse.
Nigel Stone, um dos codiretores voluntários do restaurante, não tinha dúvidas de que a iniciativa ia prosperar. “É uma solução que tem tanto senso comum, e o melhor é como congrega a comunidade, especialmente em tempos de necessidade”, afirmou. Envolverde/IPS