Clima

Semente nativa vence adversidade climática

Domitila Reyes, de 25 anos, arranca uma espiga de milho crioulo em uma área da Associação Mangle, uma das duas organizações de camponeses que produzem essas sementes para o governamental Plano de Agricultura Familiar em El Salvador. Além de seu alto rendimento, essas sementes aguentam melhor do que as demais o impacto da mudança climática que esse país centro-americano sofre. Foto: Edgardo Ayala/IPS
Domitila Reyes, de 25 anos, arranca uma espiga de milho crioulo em uma área da Associação Mangle, uma das duas organizações de camponeses que produzem essas sementes para o governamental Plano de Agricultura Familiar em El Salvador. Além de seu alto rendimento, essas sementes aguentam melhor do que as demais o impacto da mudança climática que esse país centro-americano sofre. Foto: Edgardo Ayala/IPS

Por Edgardo Ayala, da IPS – 

Jiquilisco e San Miguel, El Salvador, 1/12/2015 – Punhal na mão, Domitila Reyes abre um talho nas camadas de folhas que cobrem a espiga de milho, que arranca da planta com cuidado, em um processo que repete todas as manhãs, em meio a um mar de plantas desse cereal essencial na dieta dos salvadorenhos. Reyes realiza o que em El Salvador se chama tapisca, palavra derivada do dialeto nahuat pixca, que significa cortar a espiga quando a planta já está seca e os grãos duros.

Esse processo culminará, semanas depois, com a seleção das sementes de qualidade que assegurarão a soberania e a segurança alimentar de boa parte dos camponeses pobres desse país centro-americano de 6,3 milhões de habitantes.

Cerca de 614 mil salvadorenhos são agricultores e 244 mil deles cultivam milho ou feijão em terrenos de 2,5 hectares, em média, segundo o Ministério de Agricultura e Pecuária. Na área rural, 43% das famílias vivem na pobreza, contra 29,9% das urbanas, conforme a última pesquisa anual do Ministério da Economia.

“Vejo que a colheita está boa, apesar de a chuva ter atrapalhado”, disse Reyes, de 25 anos, que ganha cerca de US$ 10 diários “tapiscando”. De fato, as alterações climáticas mudaram os ciclos produtivos no país, que sofre períodos longos de seca no inverno, a estação úmida que vai de maio a outubro, e de chuvas no verão, a estação seca, o que arruinou muitas produções de milho e feijão.

Para Reyes, que usa gorro, calça jeans e blusa de manga longa para se proteger do sol, se mostra aliviada pelo fato de as sementes de qualidade, ou melhoradas, como também são chamadas aqui, conseguirem resistir aos efeitos da mutável natureza. “Esses milhos resistiram melhor, a chuva afetou, mas pouco, outras sementes não teriam suportado o golpe”, pontuou Reyes à IPS em meio ao milharal, antes de prosseguir seu trabalho de cravar o punhal nas folhas das espigas, que os camponeses salvadorenhos chamam de tuzas.

Reyes faz parte dos vinte trabalhadores que, sob o forte sol de verão, trabalham temporariamente em uma plantação de milho de sete hectares, uma das várias pertencentes à Associação Mangle, no assentamento Ciudad Romero, no município de Jiquilisco, departamento de Usulután. A região é conhecida como Baixo Lempa, por causa do rio que atravessa El Salvador desde o norte até desembocar no Oceano Pacífico.

Nessa região estão assentadas 86 comunidades com uma população total de 23 mil habitantes. Boa parte é de ex-combatentes da outrora guerrilha Frente Farabundo Martí para a Libertação Nacional (FMLN), que, entre 1980 e 1992, travou uma guerra contra os governos de direita, na qual morreram cerca de 70 mil pessoas.

A Associação Mangle é uma das duas produtoras de sementes crioulas (próprias de cada região) em El Salvador ou de polinização livre, que não são produto do cruzamento de variedades, como as híbridas. A outra é a cooperativa Nancuchiname, também no Baixo Lempa.

As mãos laboriosas de Ivania Siliézar, de 55 anos, recolhem novas sementes melhoradas de feijão, colhido em seus três hectares nas ladeiras do vulcão Chaparrastique, no departamento de San Miguel, leste de El Salvador. Graças a essas sementes crioulas conseguiu duplicar sua produção. Foto: Edgardo Ayala/IPS
As mãos laboriosas de Ivania Siliézar, de 55 anos, recolhem novas sementes melhoradas de feijão, colhido em seus três hectares nas ladeiras do vulcão Chaparrastique, no departamento de San Miguel, leste de El Salvador. Graças a essas sementes crioulas conseguiu duplicar sua produção. Foto: Edgardo Ayala/IPS

Sua produção de 500 mil quilos dessas sementes é vendida ao governo para que distribua a 400 mil camponeses, como parte do Plano de Agricultura Familiar (PAF). Cada agricultor recebe dez quilos de sementes de milho e feijão, bem como fertilizantes. “Um êxito de nossa organização é que o governo aceitou a produção e o abastecimento do PAF com sementes crioulas, apontou Juan Luna, coordenador do Programa Agrícola da Associação Mangle.

Luna assegurou à IPS que com essas sementes os produtores estão melhor preparados para enfrentar a mudança climática e garantir a segurança e a soberania alimentares da população. Dessa população, cerca de 700 mil pessoas, ou 12,4%, estão subalimentados, segundo dados da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO).

A Associação Mangle e outras três cooperativas da região produzem 40% das sementes melhoradas do PAF, sejam crioulas ou a variedade hibrida chamada H59, desenvolvida pelo governamental Centro Nacional de Tecnologia Agropecuária e Florestal Enrique Álvarez Córdova (Centa). O restante é gerado por cooperativas localizadas em outras regiões do país.

“As sementes trabalhadas pelo Centa são um material genético de alta qualidade, que se adapta desde o nível do mar até os 700 metros de altitude”, explicou à IPS o representante e coordenador residente da FAO em El Salvador, Alan González.

O esforço de promover esse tipo de semente como uma ferramenta para enfrentar a mudança climática e fortalecer a segurança e a soberania alimentares se insere no Programa Mesoamérica Sem Fome, impulsionado pela FAO desde 2014 na América Central, Colômbia e República Dominicana, acrescentou o especialista.

Para González, “as sementes de alta qualidade são estratégicas para o país, porque permitem que as famílias produtoras possam plantar seus cultivos em uma época de crise, nacional e mundial, devido à variabilidade da mudança climática”.

Até 2009, a produção das sementes para o PAF incluía cinco empresas. Mas nesse ano chegou ao poder o FMLN, convertido em partido político com os Acordos de Paz de 1992, e modificou as regras do jogo para que os pequenos produtores organizados em cooperativas pudessem participar do negócio.

Outra vantagem dessas sementes melhoradas, além de sua resistência à seca ou à umidade, é seu alto rendimento. A FAO calcula que a produtividade aumenta em 40% no caso do feijão e em 30% no do milho, o que incide na segurança alimentar e nutricional das famílias mais vulneráveis.

“Há maior abundância e nos resta um pouco mais de dinheiro”, contou Ivania Siliézar, de 55 anos, produtora de uma variedade de feijão melhorada na comunidade El Amate, no município de San Miguel, no departamento de mesmo nome, 135 quilômetros a leste de São Salvador. Ela acrescentou à IPS que levou tempo contar quantas vagens tem uma só planta desse feijão. “Tinha mais de 35, por isso é abundante”, disse, orgulhosa.

A variedade de feijão produzido por ela e outros 40 membros da cooperativa Fuentes e Palmeras se chama chaparrastique, desenvolvida também pelos técnicos do Centa e que recebe o nome do vulcão em cujas ladeiras essa e outras seis cooperativas produzem a leguminosa, que vendem nos mercados locais e ao PAF.

Siliézar cultiva sua propriedade de pouco mais de três hectares, e na chamada colheita derradeira, a última do ano, obteve 1.250 quilos, um excelente rendimento. Pelos resultados tão bons obtidos pelos 255 agricultores dessas sete cooperativas, criaram uma empresa, a Produtores e Comerciantes Agrícolas do Oriente S.A. (Procomao) e já conseguiram mecanizar seus processos com a instalação de uma unidade que conta com máquinas, como secadoras, entre outras.

A unidade, com investimento de US$ 203 mil, financiados pela cooperação espanhola, foi montada com apoio da FAO, do Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola, pela prefeitura de San Miguel e pelo Ministério de Agricultura e Pecuária. Sua capacidade permite processar três toneladas de feijão por hora.

Outras três empresas de pequenos produtores seguiram esse caminho, das quais participam outras 700 famílias dos departamentos de San Miguel, Usulután e outro vizinho. “Tivemos praga, mas, graças a Deus, e à qualidade dessas sementes, temos nossa colheita”, disse, alegre, Siliézar. Envolverde/IPS