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Terramérica - Alma de Buenos Aires cada vez mais cinza

Detalhe de um parque gradeado na Plaza Francia, no bairro de Recoleta, em Buenos Aires, na Argentina. Foto: Fabiana Frayssinet
Detalhe de um parque gradeado na Plaza Francia, no bairro de Recoleta, em Buenos Aires, na Argentina. Foto: Fabiana Frayssinet

Buenos Aires, Argentina, 2 de fevereiro de 2015 (Terramérica).- Se as cidades têm alma, a da capital da Argentina está cada dia mais cinza. A especulação imobiliária, parques com cimento e grades, e os bares das praças foram desbotando suas tonalidades.

Buenos Aires era verde, e na primavera colorida, por suas árvores em flor. Assim a recordam fotos do século passado, em parques emblemáticos como El Rosedal e nas estrofes perdidas de tangos como o imortalizado por Carlos Gardel, do “caminho que o tempo apagou” e “que estava bordado de trevos e juncos em flor”.

O tempo apagou o caminho e os espaços verdes que atravessava. Daquela época, entre 1880 e 1930, quando os parques foram criados inspirados em Paris, restam apenas as sombras dessa chamada “cidade luz”.

“Antes, a alma de Buenos Aires era a identidade de cada bairro, como os vizinhos colocavam as cadeiras na calçada, a confiança que havia na rua, a continuação da casa no muro, na rua, nas praças e em toda a cidade… Tudo se diluiu em uma espécie de cidade igual a si mesma, pretensiosa e excludente”, ilustrou em novembro na revista Ñ a ensaísta Gabriela Massuh.

A ONU-Habitat tomou como parâmetro uma recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) para estabelecer em seu informe O Estado das Cidades da América Latina e do Caribe 2012 que as cidades têm que dispor “de no mínimo entre nove e 11 metros quadrados de área verde por habitante”. Massuh, autora de O Roubo de Buenos Aires, disse à IPS que, agora, “concretamente, a cidade precisaria de pelo menos 70 novas praças para cobrir a quantidade de metros quadrados recomendada pela OMS”.

Tabela dos espaços verdes por habitante em algumas cidades da América Latina, da Iniciativa de Cidades Emergentes e Sustentáveis (em espanhol). Foto: Ices/BID
Tabela dos espaços verdes por habitante em algumas cidades da América Latina, da Iniciativa de Cidades Emergentes e Sustentáveis (em espanhol). Foto: Ices/BID

Segundo o informe, a variedade de critérios para definir áreas verdes e sua irregular distribuição urbana “complica o cálculo da média real”. O município autônomo da capital lançou, em 2014, o Plano Buenos Aires Verde, destinado a “mitigar os efeitos do dano causado pela mudança climática, reduzir a temperatura da cidade, diminuir o consumo energético e limitar a emissão de gases-estufa”.

O estudo informa que a superfície verde da cidade era de 1.120 hectares, ou 3,9 metros quadrados por habitante, em um município com cerca de três milhões de habitantes. Cálculos da Iniciativa de Cidades Emergentes e Sustentáveis (Ices), do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), que também assume a recomendação da OMS, colocam Buenos Aires entre as piores cidades da região nesse aspecto.

Um dos coordenadores da Ices, Horacio Terraza, pontuou que o levantamento evidencia que, exceto Curitiba, no Brasil, com valores semelhantes às cidades do norte europeu, as cidades latino-americanas estudadas, poucas delas capitais, deixam bastante a desejar em matéria de espaços verdes.

Depois de Curitiba (51,3 metros quadrados por habitante), outras cidades que atendem aos padrões “saudáveis” são as brasileiras Porto Alegre (13,62 metros quadrados), São Paulo (11,58) e Belo Horizonte (9,4), a uruguaia Montevidéu (12,68) e a argentina Rosário (10,4).

Em Buenos Aires, a deterioração dos espaços verdes começou durante a última ditadura militar (1976-1983), quando as praças foram cimentadas ou feitas em concreto armado, como símbolo do desenvolvimentismo. Segundo Massuh, continuou na democracia, durante o neoliberalismo dos anos 1990, e se aprofundou desde 2007, quando o governo da cidade passou para o neoconservador Mauricio Macri e à sua aliança Proposta Republicana.

“O método de militarizar o espaço público se parece muito ao usado pelos militares para reformar espaços verdes sob o pretexto da segurança”, pontuou Macri. “Em lugar de propor melhor iluminação ou maior intervenção dos moradores no cuidado da praça, a grama se transformava em cimento, construía-se ciclovias em lugares verdes (como no bairro Palermo, convertido em um forno no verão pela substituição da terra pelo cimento) e começaram a colocar grades para impedir a utilização noturna das praças pelos sem teto”, ressaltou.

Segundo Massuh, trata-se de um saneamento definido como “exclusão do verde, da sombra no verão, e da pobreza”, que o Plano Buenos Aires Verde, anunciado para os próximos 20 anos, não mitigaria.

Entre outras medidas, busca-se “uma transformação definitiva de Buenos Aires em uma cidade verde”, o plano municipal promete garantir áreas verdes “de 350 metros para cada morador”, construir 12 parques e 78 praças, reinstaurar 30 e plantar um milhão de árvores em dez anos, isto é, uma para cada três habitantes.

Segundo Massuh, o contradizem inúmeros fatos, como um projeto municipal que, embora não tenha prosperado pelos protestos que causou, propunha construir um depósito de caminhões e de lixo na Reserva Ecológica Costeira Sul, às margens do Rio da Prata, em sete de seus 350 hectares, considerada um grande pulmão urbano.

Outro projeto, no momento paralisado pela justiça, seria a concessão gratuita de 15 dos 20 hectares do Parque Roca, “um dos poucos espaços de potencial criativo na cidade”, para construir uma central de transferência de cargas. O mesmo ocorre com a autorização para instalar bares nas praças, o que,para a prefeitura, é “valorizá-las”.

“Essa valorização das praças e uma maquiagem, além de aumentar o concreto e as grades nas mesmas… Não cuidam nem dos lagos urbanos”, advertiu ao Terramérica o biólogo Matías Pandolfi, do Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas.

“A especulação imobiliária é nossa megamineração ou nossa soja transgênica”, afirmou Massuh, citando o advogado ambientalista Enrique Viale, que conceitua dessa forma “o extrativismo urbano”, como a expulsão da população, a concentração da riqueza e do território, a apropriação do público, os danos generalizados ao ambiente e a degradação da vida institucional, entre outras “nefastas questões”.

Cidades da América Latina segundo seus espaços verdes por habitante e metro quadrado (em espanhol). Foto: Ices/BID
Cidades da América Latina segundo seus espaços verdes por habitante e metro quadrado (em espanhol). Foto: Ices/BID

Para Pandolfi, essa exploração de recursos naturais urbanos atenta contra muito mais do que uma paisagem e “é um perigo para a saúde dos cidadãos”. Ele explicou que, “por meio do processo de fotossíntese, as árvores absorvem o dióxido de carbono e oxigenam o ar e também contribuem para a regulação hídrica e térmica das cidades”.

A apropriação do verde também se manifesta, segundo Pandolfi, no gradeamento dos parques. Atualmente, 86 estão cercados, um terço do total da cidade, estimou. “Para gerar consciência ecológica, os espaços verdes devem ser o mais naturais possíveis, colocar grades no espaço público, que é o espaço democrático por excelência, é tirar-lhe essa sua maior virtude”, destacou.

Pandolfi enfatizou que os parques são “articuladores da vida social e criadores de uma consciência ambiental da cidadania”. Por isso, o entorno tem que ser o mais natural possível. Que consciência ecológica se pode transmitir de um Starbucks ou um McCafé instalado dentro de um parque com grades?”, perguntou. Envolverde/Terramérica

* A autora é correspondente da IPS.

 

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Artigo produzido para o Terramérica, projeto de comunicação dos Programas das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) e para o Desenvolvimento (Pnud), realizado pela Inter Press Service (IPS) e distribuído pela Agência Envolverde.