Rio de Janeiro, Brasil, 30 de março de 2015 (Terramérica).- No Brasil, água e eletricidade seguem unidas, assim, dois anos de chuvas escassas deixaram dezenas de milhões de pessoas à beira do racionamento hídrico e energético, fortalecendo os argumentos contra o desmatamento da Amazônia. Dois terços da energia elétrica nacional provêm de rios represados, cujos fluxos baixaram a níveis alarmantes. A crise reativou preocupações sobre a mudança climática, a necessidade de reflorestar as margens fluviais e novas teses sobre o sistema elétrico.
“É preciso diversificar as fontes e reduzir a dependência de centrais hidrelétricas e termoelétricas movidas por combustíveis fósseis, para enfrentar eventos extremos do clima que são cada vez mais frequentes”, afirmou ao Terramérica o vice-presidente do não governamental Instituto Vitae Civilis, Delcio Rodrigues.
A fonte hidráulica fornecia quase 90% da geração elétrica até o apagão de 2001, que forçou a um racionamento durante oito meses. Desde então a termoeletricidade avançou, mais cara e contaminante, para compensar instabilidades hídricas. Atualmente, as centrais térmicas, operadas majoritariamente com petróleo, alcançam 28% da capacidade nacional de geração, contra 66,3% das hidrelétricas. As demais fontes continuam marginais.
Partidários da energia hidráulica defendem um retorno às grandes represas, com capacidade para resistir a secas prolongadas. Eles argumentam que a insegurança de fornecimento se deve às centrais de passagem, com pequena capacitação de retenção de água, impostas por razões ambientais.
“Mas o maior reservatório de água é a floresta”, contrapõe Rodrigues, para explicar que sem o desmatamento, que afeta todas as bacias, haveria mais água retida no solo sustentando a corrente fluvial. “As florestas constituem fonte, meio e fim do fluxo, porque produzem a umidade atmosférica continental, a infiltração da chuva no solo acumulando água e a proteção das represas”, afirmou Antonio Donato Nobre, pesquisador de temas climáticos.
“A Amazônia já tem 47% de sua floresta impactada, somando o corte total que chega a quase 20% e a degradação”, destacou Nobre, do Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia e do Instituto Nacional de Estudos Espaciais. Isso favorece os incêndios. “Antes não penetravam em áreas úmidas de florestas ainda verdes, agora penetram, avançam floresta adentro, queimando imensas extensões”, ressaltou ao Terramérica. “As árvores amazônicas não têm tolerância ao fogo, ao contrário das existentes na ecorregião do Cerrado, adaptadas a incêndios periódicos. As florestas amazônicas demoram séculos para se recompor”, acrescentou.
O cientista teme que o desmatamento esteja afetando o clima sul-americano, inclusive tirando chuvas do sudeste brasileiro, a região mais povoada e que mais hidreletricidade gera no país. “Faltam estudos para quantificar a umidade transportada para diferentes bacias”, para precisar a relação climática entre a Amazônia e outras regiões, explicou Nobre. E ressaltou que na região amazônica oriental, onde se concentram a destruição e a degradação florestal, já são visíveis as alterações climáticas, como a redução das chuvas e a ampliação do período de estiagem.
Na bacia do rio Xingu, este pode ser o ano com menor precipitação em 14 anos de medição em Canarana, município que fica em sua cabeceira, segundo o Instituto Socioambiental (ISA), que desenvolve um programa de sustentabilidade para povos indígenas e ribeirinhos da bacia. Se isso se fixar como tendência, afetará a hidrelétrica de Belo Monte, em construção 1.200 quilômetros rio abaixo, que terá capacidade de geração de 11.233 megawatts (MW), o que a converterá na terceira maior do mundo quando estiver plenamente operacional, a partir de 2019.
Mas sua geração efetiva poderá cair 38% até 2050, com relação ao previsto, se o desmatamento prosseguir no ritmo atual, segundo um estudo realizado por oito pesquisadores brasileiros e norte-americanos, publicado em 2013 pela revista da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos. Esse ano, o desmatamento na bacia do Xingu já atingiu 21,3% de seu território, estimou o ISA.
Na Amazônia são construídas outras grandes hidrelétricas que também poderão sofrer perdas. No rio Madeira, fluxos torrenciais de seus afluentes da Bolívia e do Peru submergiram em 2014 a zona onde estão as centrais de Jirau e Santo Antonio, afetando suas operações recém-iniciadas.
A tendência na parte sul da bacia amazônica é de “eventos mais intensos, com estiagens e cheias mais fortes”, como as intensas secas de 2005 e 2010 e cheias anormais em 2009 e 2012, pontuou Naziano Filizola, hidrólogo da Universidade Federal do Amazonas. “Além de alterar o fluxo, o desmatamento se vincula à ocupação agrícola que lança pesticidas no rio, como ocorre no alto Xingu. A água perde qualidade, segundo notam os indígenas”, afirmou o especialista ao Terramérica.
Filizola afirmou que o mesmo projeto energético realimenta esse processo, ao atrair trabalhadores migrantes, aumentando a população local sem oferecer condições adequadas. De todo modo, o impacto energético mais intenso por chuvas insuficientes ocorre, no momento, na região do Planalto Central, onde predomina o Cerrado, um bioma de savana e o segundo mais extenso do Brasil, atrás da Amazônia. Ali nascem as principais bacias com aproveitamentos hidrelétricos.
A do rio Paraná, que corre para o sul e concentra a maior capacidade geradora do país, recebe do Cerrado metade de suas águas, o que sobe para 60% na bacia do rio Tocantins, que flui para o norte amazônico, afirmou Jorge Werneck, pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).
Esses rios impulsionam as duas maiores hidrelétricas brasileiras atuais: Itaipu, compartilhada com o Paraguai, e Tucuruí. Ambas estão entre as cinco maiores do mundo. Outro exemplo é o rio São Francisco, principal fonte elétrica da região Nordeste, com 94% de seu fluxo hídrico proveniente do Cerrado.
Em seu campo de observação, os arredores de Brasília, onde nascem vários rios, Werneck, especialista em hidrologia da Embrapa Cerrados, notou uma tendência geral ao prolongamento da estiagem. “Mas faltam dados e estudos para comprovar a relação entre desmatamento amazônico e mudanças no regime de chuvas nas regiões Centro-Oeste e Sudeste do Brasil”, afirmou.
Em 2014, houve seca nessas regiões, que compreendem a maior parte do Cerrado, mas “não faltou umidade na Amazônia e, de fato, choveu muito nos Estados de Rondônia e Acre”, na fronteira com a Bolívia e o Peru e vítimas de fortes inundações, argumentou.
As florestas prestam variados serviços ecológicos, mas ainda assim não se pode afirmar que produzem e conservam água em grande escala. Suas copas “impedem que 25% da chuva chegue ao solo” e sua evapotranspiração retira do solo a água que deixa de alimentar os rios, “onde a necessitamos”, acrescentou Werneck, concluindo que “avaliar a hidrologia das florestas continua sendo um desafio”.
Nobre, pelo contrário, defende as grandes florestas como “bombas bióticas”, que atraem e produzem chuvas. Em sua opinião, não basta evitar o desmatamento da Amazônia, sendo urgente reflorestá-la, para recuperar seus serviços climáticos. Um exemplo a ser seguido é o de Itaipu, que reflorestou sua área de influência direta na bacia paranaense, revitalizando afluentes, mediante seu programa Cultivando Água Boa. #Envolverde/Terramérica
* O autor é correspondente da IPS.
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Artigo produzido para o Terramérica, projeto de comunicação dos Programas das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) e para o Desenvolvimento (Pnud), realizado pela Inter Press Service (IPS) e distribuído pela Agência Envolverde.