Izalco, El Salvador, 2 de março de 2015 (Terramérica).- Quase três anos depois de os indígenas de El Salvador obterem o reconhecimento de seus plenos direitos na Constituição, as políticas públicas e as leis que devem traduzir em realidade essa conquista histórica continuam sem aparecer no horizonte.
A Assembleia Legislativa (unicameral) ratificou em junho do ano passado uma reforma constitucional aprovada em abril de 2012 que instituiu direitos para os povos originários deste país centro-americano, mas dirigentes de comunidades e organizações indígenas expressaram à IPS seu temor de que tudo fique em “letra morta”.
“Houve mudanças que estão cheias de boas intenções, mas falta dar orientação a essas intenções”, disse ao Terramérica a líder Betty Pérez, responsável pelo Conselho Coordenador Nacional Indígena Salvadorenho (CCNIS). Na reforma do Artigo 63 da Constituição se estabelece que “El Salvador reconhece os povos indígenas e adotará políticas a fim de manter e desenvolver sua identidade étnica e cultural, cosmovisão, seus valores e a espiritualidade.
Esses princípios englobam aspectos tão diversos como o respeito às suas práticas medicinais ou ao seu direito coletivo à terra, e segundo deputados de diferentes tendências, “permite pagar uma dívida histórica” e, ao reconhecê-los, começa a tirar os povos originários “da invisibilidade a que foram condenados”.
Pérez explicou que já iniciou um processo de diálogo entre organizações, comunidades e os ministérios envolvidos para ver como concretizar as políticas públicas, mas sem avanços porque não há uma visão unificada e “cada um caminha por sua própria lógica”. O CCNIS também luta para que este país ratifique o Convênio 169 da Organização Internacional do Trabalho, o instrumento internacional que protege os direitos dos povos originários. Mas não há data para a discussão no parlamento dessa ratificação.
A líder conversou com o Terramérica durante a comemoração do levante indígena de 1932, ocorrida em Izalco, município de 74 mil habitantes que foi epicentro da revolta e que fica 65 quilômetros a oeste de São Salvador. O movimento, que buscava melhores condições de vida para a população originária, foi brutalmente reprimido pela ditadura de Maximiliano Martínez (1931-1944), com saldo de 30 mil a 40 mil mortos.
Os povos originários salvadorenhos foram negados e deixados invisíveis por décadas, sob o argumento de que, após aquele massacre, se mesclaram com o resto da população mestiça para não serem perseguidos por sucessivos regimes militares, que os acusavam de comunistas. Deixaram de falar suas línguas ancestrais e de usar suas vestimentas. Por isso também existe escassa documentação ou dados atualizados sobre sua condição socioeconômica neste país de 6,3 milhões de habitantes.
O Perfil dos Povos Indígenas de El Salvador, elaborado pelo Banco Mundial, governo local e por organizações indígenas, estabelece que aproximadamente 10% da população é originária, dividida em três grandes grupos: nahuas/pipiles, no centro e oeste do país, lencas, no leste, e cacaoperas, no norte.
O estudo, publicado em 2003, indica que a maioria vive da agricultura de subsistência em terras arrendadas, enquanto outros são peões agrícolas. Um bom número de comunidades mantém a elaboração de artesanatos próprios de seu povo.
Especialistas e organizações indígenas insistem que, para tornar realidade o mandato constitucional, é necessária uma política integral, com enfoque inclusivo e respeito à cosmovisão de cada povo, ao menos em educação, saúde, ambiente, trabalho, desenvolvimento comunitário, titularidade da terra.
Em saúde, por exemplo, deve-se estabelecer um sistema que contenha um enfoque “intercultural, que possibilite aos indígenas receber serviços de saúde adequados e que respeitem sua cultura”, indicou em 2013 um informe do Relator Especial sobre os Direitos dos Povos Indígenas das Nações Unidas, na época James Anaya, que visitara o país no ano anterior.
Esse enfoque permitiria o reconhecimento de práticas ancestrais, como as realizadas pelo indígena Rosalío Turush, de 88 anos, em Izalco, ou Itzalku em nawat, na língua pipil. Ele ainda pratica a cura utilizando plantas, método que aprendeu com seus ancestrais, bem como a eliminação da dor com massagens em casos de fraturas ou torções.
“As pessoas naquele tempo, como a medicina era mais escassa, se valiam das plantas. Por exemplo, para curar disenteria existe uma planta que se chama trencillo”, contou Turush ao Terramérica. “Agora, o motivo pelo qual mais me procuram é para uma massagem a fim de aliviar um mau jeito, uma fratura, porque ainda tenho bom tato, boa mão”, acrescentou.
A reforma constitucional requer a aprovação das chamadas leis secundárias que regulem os novos direitos, mas seu avanço no parlamento é quase nulo. “Se a reforma não estabelecer mecanismos para lhe dar vida, se os deputados não aprovarem as leis secundárias necessárias, ficará como letra morta na Constituição”, afirmou o magistrado da Suprema Corte de Justiça, Florentín Meléndez, durante o ato que lembrou o massacre nessa localidade.
Meléndez se referiu ao espinhoso tema do acesso a terras coletivas das comunidades indígenas, algo que a Constituição já estabelecia anteriormente, mas que nunca foi regulado para ser colocado em prática. “Já é reconhecida a propriedade comunitária, basta apenas os deputados continuarem avançando na reivindicação dos direitos concretamente, não no texto, mas na realidade”, acrescentou.
No final do século 19, os povos indígenas foram despojados de suas terras comunitárias pelos latifundiários que assim ampliavam suas plantações de café, setor no qual se assentou a oligarquia do país. Esses proprietários converteram milhares de indígenas e camponeses em trabalhadores braçais, que viviam em abjeta pobreza nas fazendas de café, plantando a semente do descontentamento social que, décadas mais tarde, foi um germe da guerra civil salvadorenha (1980-1992), com saldo de 70 mil mortos.
A revolta de 1932 também foi por causa dessa usurpação de terras indígenas. “Daí vem o massacre de 32, porque os grandes latifundiários, se alguém não lhes vendesse as terras, as tiravam a ponta de pistola”, pontuou ao Terramérica outro indígena de Izalco, o artesão e músico Tito Kilizapa, de 74 anos.
Pérez, do CCNIS, recordou que a reforma constitucional atrasou uma década devido à oposição de grupos econômicos poderosos, que temiam que ela representasse uma expropriação das terras comunitárias indígenas arrebatadas no século 19 ou outras medidas contra seus interesses.
Esses grupos também trabalhariam agora contra a aprovação de leis que a concretizem, especialmente em matéria de acesso às terras. “Estamos imersos em um sistema capitalista, temos grupos de poder e há elementos econômicos e políticos que não permitem ao governo executar todos esses processos de mudança”, afirmou Pérez.
Por sua vez, Gustavo Pineda, diretor nacional de Povos Indígenas, do Ministério da Cultura, pontuou ao Terramérica que “todos esses são processos, converter a realidade dos povos indígenas implica um processo bastante longo e difícil”. Parte-se de uma realidade em que “a negação dos povos originários se deu de forma sistemática por muito tempo, podemos falar de séculos”, acrescentou. Envolverde/Terramérica
* Os autores são correspondentes da IPS.
Artigos relacionados da IPS
Começa caminho de reconhecimento para os indígenas de El Salador
Até a morte pela última floresta
Língua indígena se nega a morrer em El Salvador – 2009
Artigo produzido para o Terramérica, projeto de comunicação dos Programas das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) e para o Desenvolvimento (Pnud), realizado pela Inter Press Service (IPS) e distribuído pela Agência Envolverde.