Guanaco Sombriana, Argentina, 30 de dezembro de 2013 (Terramérica).- Cansadas de verem a seca levar seus homens e matar seus animais, as mulheres de Guanaco Sombriana, um povoado do norte da Argentina, lutam por seu destino aproveitando uma árvore que até agora dava apenas sombra nessas paisagens áridas. O campo de futebol é um símbolo dessa região semiárida do departamento de Atamisqui, 120 quilômetros ao sul de Santiago del Estero, capital da província de mesmo nome.
Dois arcos de ramas secas marcam a vegetação rala de cactos e arbustos baixos sobre o solo branco e salitroso que se estende pelo distrito de aproximadamente dez mil habitantes. O campo de futebol vazio tem um significado igualmente desolador: os jogadores, maridos, irmãos, filhos e pais, voaram como trabalhadores “andorinhas”, desta vez para a colheita de milho e de mirtilo no sul do país.
“Cheguei a ficar sozinha com meus sete filhos até oito meses por ano. Para sobreviver criava vacas, cabritos, leitões e galinhas. Vendíamos e um pouco era para nosso consumo. Mas, como há dois anos enfrentamos uma seca, muitos animais morreram”, contou Graciela Sauco. Dizem que é a pior seca dos últimos dez anos. Não há dinheiro para forragem e os animais morrem diante da impotência de seus donos. São camponeses pobres, com terras de até 50 hectares, herdadas de seus antepassados e sem título de propriedade. Tampouco se pode, como antes, plantar abóbora e milho para os animais.
“Gostaria que meus filhos tivessem um trabalho melhor, para não terem de ir para tão longe”, disse Sauco, entre soluços. “O último filho foi hoje para a desflorada (de milho) em Buenos Aires. Vivem em pequenas casas pré-fabricadas, passam calor, dormem em catres”, lamentou Eleuteria Ledesma. Para as festas de fim de ano, “não tiveram permissão para viajar”, o que entristece mais as mulheres de Guanaco Sombriana.
Entretanto, agora têm uma esperança. Há uma década se organizaram na Associação de Pequenos Produtores das Salinas Atamisquenhas (APPSA Guanaco), hoje integrada por 80 famílias dessa aldeia de 566 habitantes. O começo foi difícil, recordou Lastenio Castaño, assessor técnico da Subsecretaria de Agricultura Familiar do Ministério de Agricultura, Pecuária e Pesca da Argentina.
“Não há água, às vezes nem para consumo das pessoas, menos ainda para os animais ou cultivos. Aqui só o que sobrevive é o gado caprino”, explicou Castaño. Contudo, “apesar de ser um animal muito aguerrido, nesses últimos anos houve muita mortalidade”. A biodiversidade do monte (bosque de arbustos baixos) tampouco ajuda para se “empreender alguma questão produtiva. Há pouquíssima variedade de espécies”, detalhou ao Terramérica.
Os camponeses tinham a ilusão de que o galpão de adobe que construíram fosse “um lugar para armazenar frutos do monte e grãos para fazer um alimento balanceado para seus animais”, pontuou Castaño. A APPSA, com apoio da Subsecretaria e da Unidade para a Mudança Rural (Ucar), também tem um pequeno moinho para extrair farinha das vagens de alfarroba branca (Prosopis alba) e negra (Prosopis nigra), típicas da região e presentes até nas canções de folclore santiaguinas. As vagens são usadas em Guanaco Sombriana como alimento do gado em épocas críticas.
A Associação recebeu cursos de produção de farinha de alfarroba e alimentos panificados, em moda nas lojas naturalistas e feiras orgânicas. A farinha é aromática e doce, com sabor semelhante ao do cacau, rica em fibras, proteínas, fósforo, potássio, cálcio, ferro, pectina, várias vitaminas e taninos. “Antes, moíamos as vagens com pilão. Com o novo moinho moemos uma grande quantidade em pouco tempo. Não apenas vagens, mas tudo o que queremos, também o milho”, afirmou Lili Farías.
O Terramérica chegou à sede da APPSA em um dia de dezembro de trabalho febril, em plena época da colheita. Uma caminhonete carregada de sacas com vagens estaciona à porta. A Associação agora tem recursos para comprar colheita de outros povoados. As mulheres pesam as sacas e marcam tudo em uma caderneta. Outras moem, em uma corrida contra o tempo. A temperatura chega a 50 graus nessa época do ano e as vagens podem “bichar”, explicam.
Para fazerem suas contas usam a calculadora dos telefones celulares, que “só servem para isso e para tirar fotos, porque não temos sinal”, se queixou Marcela Leguizamón. Cada sócia contribui com uma garrafa de água. Tomam mate, a típica infusão de erva-mate, e festejam cerca de duas toneladas de farinha. “Esse é um passo muito importante para a Associação, que cresceu e está mais independente. Temos fundos para manejar. Antes nos virávamos com as cotas dos sócios ou rifas. Agora, com a venda da farinha temos lucro”, apontou Claudia Rojas.
Castaño acrescentou que é preciso melhorar a distribuição comercial, o transporte e os serviços básicos como eletricidade e água. Porém, a APPSA se converteu em um interlocutor mais forte para apresentar suas demandas às autoridades. Com um fundo rotatório de aproximadamente US$ 21 mil para esta e outras comunidades, a APPSA pode comprar alimentos para o gado e conceder microcréditos para a construção de cercas nos currais e de cisternas, entre outras necessidades.
Esse fundo é financiado pelo Programa de Desenvolvimento de Áreas Rurais da Ucar, que tem alcance nacional e se destina a “contribuir para a coesão social e produtiva” dos camponeses, com ênfase nas economias regionais. As associadas da APPSA sonham com computadores “para terem um registro de tudo”, porque os “papeizinhos, às vezes, perdemos”, observou Leguizamón. A renda de cada família começa a melhorar. O dinheiro é usado em comida, roupas ou motocicletas, o meio de transporte por excelência nessa região de caminhos às vezes intransitáveis.
“Estamos tentando fazer com que jovens que partem como andorinhas fiquem aqui trabalhando com os frutos do monte. Para que trabalhar em outras terras podendo aproveitar o que temos aqui?”, enfatizou Farías. Estima-se que 75% da superfície argentina é de terra seca e 40% dessa área já apresenta sintomas de desertificação. O governo quer estender o projeto para outras regiões com alfarroba autóctone. Em San Gerónimo, no vizinho departamento de Loreto, já é realizada uma experiência semelhante.
Teolinda Coronel, sua filha, sua sobrinha e uma neta vão ao monte colher vagens de alfarroba às 6h30. “Trazemos a garrafa térmica, tomamos mate e retornamos ao meio-dia. Nesse período cada uma colhe 35 quilos, ou mais”, acrescentou. A colheita recomeça às 17h, quando baixa o sol lacerante. Ela espera que os filhos voltem. Com o que ganham como andorinhas “não podem nem pagar suas contas” e com as vagens podem comprar roupa, sapato ou ajudar suas mães.
A viagem por essas regiões onde a vagem da alfarroba se tornou ouro acaba em uma mesa com alfajores, pudins e torta doce, acompanhados da bebida aloja (água, mel e especiarias) e do doce suco de chañar, outra árvore leguminosa da região. Esses frutos também representam ganhos que não são anotados nas cadernetas.
“Antes, ficava em casa estressada, pensando em como fazer algum dinheirinho, e agora vêm à minha casa comprar meus produtos, conheço outros lugares, outras pessoas”, contou Graciela Ardiles, produtroa da localidade de Arraga, que antes trabalhava como faxineira. “Agora tenho minha carreira profissional independente. E meus filhos poderão estudar, como eu não pude”, ressaltou. Envolverde/Terramérica
* A autora é correspondente da IPS.
LINKS
O desafio de produzir alimentos em terras secas – 2012, em espanhol
Outra vez a ameaça da seca na Argentina – 2012
O sonho da fábrica mundial de alimentos – 2011, em espanhol
Artigo produzido para o Terramérica, projeto de comunicação apoiado pelo Banco Mundial Latin America and Caribbean, realizado pela Inter Press Service (IPS) e distribuído pela Agência Envolverde.